sábado, 28 de maio de 2011

Lembranças no engarrafamento

      Se não morreu, dona Emília há muito já passou dos oitenta. Por onde andará? Me lembro dela ao cair preso num engarrafamento bem em frente ao prédio em que ela morava, na Rua Marquês de Abrantes, Flamengo.
Foi meu primeiro endereço no Rio. Chegado de Curitiba, uma parente me levou a dona Emília.
- Você me paga 18 mil cruzeiros por mês – ela disse – e recebe quarto e banho, café da manhã, almoço e jantar, roupa lavada e passada, mais telefone. Mas o telefone não é pra papo com namorada ou amigo, é pra dar ou pegar recado. E não pode andar só de cueca fora do quarto.
Topei, avisei o pai que os 20 mil combinados de mesada eram pouco, eu precisava de 30 mil. Tudo certo, me inscrevi no vestibular de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia (a famosa FNFi da Universidade do Brasil (hoje, UFRJ) e comecei a desbravar o Rio de Janeiro.
Em pouco tempo, com meus olhos provincianos, percebi que o inusitado não estava apenas nas ruas, praças e praias da cidade. Habitava também o apartamento de dona Emília, num 11º andar.
Dona Emília dava aulas particulares para adultos que queriam se alfabetizar ou fazer o admissão ao ginásio – empregadas domésticas, na maioria – e vivia com um sujeito 13 anos mais novo que ela.
Sem ter onde cair duro e de uma ignorância imensa, o cara era tão ou mais reacionário que a mais reacionária elite da época, contra todas as reformas propostas pelo Governo João Goulart (voto ao analfabeto, reforma agrária etc). Costumávamos discutir. No dia 1º de abril de 1964, quando os militares mergulharam o Brasil nas trevas, ele me recebeu eufórico.
- Moscouzinho, vocês se ferraram. Agora é a nossa hora.
Achei que, sem demonstrar temor, devia procurar outro pouso. De noite, conversei sobre isso com Joãozinho, o sobrinho de dona Emília que morava conosco. Ele, ignorante como o tio postiço, também me achava meio comuna, mas, além de amigo, não estava nem aí para o que ocorria no país. O seu negócio eram as corridas na Gávea. Bancário encostado na Previdência por causa de uma úlcera, passava os dias colado ao rádio, ouvindo os programas de turfe e sonhando com uma aposta milionária que o livrasse definitivamente da falta de dinheiro. Às vezes pedia algum à tia.
- Pra quê – ela se exaltava -, pra meter no cu dos cavalos?
 Ríamos do jeito desabrido de dona Emília e, aproveitando o momento de leveza, Joãozinho perguntava se eu não lhe arranjaria a grana. Eu dizia que não tinha, e quase sempre era verdade, os 12 mil cruzeiros que sobravam da mesada enviada pelo pai davam na medida para o ônibus, o cigarro (eu fumava), o cinema semanal e um ou dois livros por mês.
Certo dia, Joãozinho me induziu a uma aposta, não me lembro de quanto. De posse do programa dominical do Jóquei, eu diria o nome dos cavalos inscritos, do primeiro ao último pareio, na ordem que quisesse, e ele responderia com o nome do pai, da mãe e dos irmãos, próprios (mesmo pai e mesma mãe) ou não.
- Se eu errar os pais e os irmãos de uma cavalo que seja, perco o dinheiro.
Acertou de cabo a rabo e, feliz da vida, foi fazer sua fezinha.Voltou cabisbaixo. De novo se dera mal.
Naquela noite de 1º de abril em que o companheiro de dona Emília me chamou de Moscouzinho, Joãozinho concordou que eu devia me mudar.
- Sai antes que esse cara te apronte alguma. Ele é perigoso.
Exagero do Joãozinho. O cara era apenas um pobre coitado. Os perigosos de verdade eu conheceria mais tarde, sobretudo depois do AI5, em 68. Mesmo sem uma atividade política que me transformasse em perseguido do regime, andei esbarrando em figuras tenebrosas.
Mas isso é assunto para outra crônica. Por ora, no meio do engarrafamento na Marquês de Abrantes, fico na pergunta lá de cima: por onde andará dona Emília?   

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Em Roma, o papa mandou fechar o mosteiro da Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, porque as freiras dançavam nas cerimônias litúrgicas. Em Dom Pedrito (RS), o Exército abriu inquérito para apurar o caso de seis soldados que dançavam ao som do Hino Nacional em versão funk (o vídeo, na internet, é ótimo). Como sempre, basta o corpo se libertar que o Poder entra de sola. O corpo é o grande inimigo.

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Dizem as investigações que a queda no Atlântico do avião da Air France, em 31 de maio de 2009, durou três minutos e meio. Para as 228 pessoas a bordo, uma eternidade. 

sábado, 21 de maio de 2011

De coração

      Foram três anos ótimos, de entendimento em todos os níveis. Um dia, de estalo, ela avisou que não queria mais. Uma bomba na cabeça dele. O desenlace durou semanas, ela se retirando, ele insistindo.
Finalmente, o amor-próprio em frangalhos, ele reconheceu que lhe restava enfrentar a verdade. Viver a rejeição, como se dizia na época. Deixou de procurá-la e, nos seis meses seguintes, pensou nela da hora em que acordava à hora em que dormia. E, dormindo, costumava puxá-la para algum sonho.
Na manhã em que acordou com outro pensamento, emocionou-se. Caramba, sobrevivi. De noite, comemorou com dois ou três amigos do peito. Em nenhum momento, porém, achou que o amor se esgotara. Não se enganaria assim. O amor, sabia, continuava firme, apenas havia se civilizado. Ainda faltava tempo para virar lembrança.

Doze anos depois do término do namoro, esbarraram-se na Rua Conde de Bonfim. Abraçaram-se longamente e, debaixo de uma marquise, conversaram por duas horas. Ela estava casada e infeliz, ele separado e de bem com o mundo.
- Você foi a mulher mais importante de minha vida – ele disse, como se já tivesse envelhecido.
- Não brinca, é mesmo? – ela meio que riu e os olhos pesaram.
Ao se despedirem, anotaram os telefones. “Eu não vou telefonar”, ele comentou com um amigo, “o casamento dela está uma droga, não quero causar problema. Agora, se ela telefonar, não me responsabilizo.”
Ela telefonou. Saíram para almoçar, esticaram o almoço até a notinha, combinaram se rever.
Reviram-se, pontuais e alegres.
- Fui cruel contigo – ela disse.
 - Esquece – ele falou de coração.
Passaram a se encontrar no apartamento dele, quase toda manhã. Era delicioso, mas ele logo percebeu que da antiga namorada – voluntariosa, cheia de garra e vontade de viver – a amante de hoje tinha muito pouco. Deixara de dirigir porque o marido a convencera a não correr perigo no trânsito; desistira da carreira de advogada porque o marido, também advogado, não se sentia bem com tal coincidência; começara a freqüentar uma dessas seitas oportunistas porque o marido, convertido, não a admitia longe do templo.
No início, ele se recusou a acreditar em tamanha submissão.
- Absurdo. Você não está exagerando?
- Às vezes, nem eu creio que cheguei a esse grau de derrota.
- Mas o que houve, que vendaval te derrubou?
- Se eu soubesse...
- De qualquer modo, você está aqui. Comigo, não com teu marido. Telefonou, me convidou para almoçar, a derrota não é total.
- Será que não? Eu não me entendo.
Esse tipo de papo, repetitivo, o punha de mau humor. Esquisita sensação de que sofrera por alguém inexistente. Na manhã seguinte, no entanto, acordava cedo e, inquieto, esperava a campainha tocar.
Certa tarde, os dois de folga, foram ao cinema. À saída pegaram um táxi e ele a deixou perto de casa. De madrugada o telefone o acordou. No relógio de cabeceira, três e vinte. Quem morreu?, pensou ainda grogue. Era ela.
- Desculpe a hora, não pude esperar o dia amanhecer.
- O que aconteceu?
- A gente não vai se ver mais.
- Como assim?
- O Fulano nos viu quando desci do táxi e me fez jurar que não vou mais me encontrar com você.
Ele tentou argumentar, uma voz de homem o interrompeu:
- Acabou, cara, acabou.
Não retrucou. Sem bater, pôs o telefone no gancho. Dias depois, superado o choque daquela madrugada, sentiu que, agora sim, estava livre. O fantasma da juventude se esvaíra.
Chamou dois ou três amigos do peito e comemorou.

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A beleza desleixada do Campo de Santana é de comover. Eis aí uma praça sem artifícios, com a cara do povo do Rio e arredores.

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A se confirmar a veracidade do noticiário sobre o ataque do francês Dominique Strauss-Kahn a um camareira em Nova Iorque, se poderá dizer que o tempo passa e o FMI continua o mesmo - estuprando os pobres.

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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)

No Bar
- Minha vida, me diz o coveiro,
é de casa pro cemitério,
do cemitério pra casa.
- Compreendo, eu digo, a minha
é do escritório pra casa,
de casa pro escritório.
(abril/87)

Proust
Com o tempo,
as pessoas se recolhem
porque dói ver
a própria velhice
na cara dos amigos.
(outubro/98)

Estações
Verão na cidade,
inverno em mim.
Na cidade, inferno;
em mim, aconchego.
Outono na cidade,
primavra em mim.
Na cidade, folhas no chão;
em mim, o chão da vida.
(novembro/06)

sábado, 14 de maio de 2011

Papo de velho jornalista

      Conheço um jornalista que começou a carreira antes de a máquina de escrever chegar aos jornais cariocas. Depois precisou aprender a datilografar e, mais recentemente, a lidar com computador. Eu, quando comecei, a máquina de escrever já era conquista antiga. Novidade foi a máquina elétrica, que exige cuidado, tem-se que datilografar com suavidade, se não a tecla dispara e a letra se repete algumas vezes no papel.
Pois a máquina elétrica ainda não perdera o charme, eis que a informática entra com toda força nas redações. Jamais vou esquecer a imagem de uma colega diante do computador recém-instalado, as pernas esticadas sob a mesa, os pés apoiados na máquina – até há pouco moderníssima – deixada no chão para ser recolhida ao depósito.
Hoje cercado de computadores por todos os lados – computadores para a edição de texto, para a diagramação, para a edição de fotos – em certos momentos me pergunto: como se trabalhava antes?
Alargo a pergunta, como se vivia antes da revolução tecnológica? As coisas eram pão-pão, queijo-queijo: atividade bancária, no banco; compras, na loja; filme, no cinema. E assim por diante.
Falando em cinema, recordo uma discussão que consumiu muita pizza e muito chope, sobretudo nos bares vizinhos ao Cine Paisandu, templo da sétima arte nos anos 60. O tema, levantado se não me engano pelos Cahiers de Cinema, era o seguinte: com a popularidade da fita de vídeo (quem se lembra dela?), será mesmo possível a criação de cinematecas caseiras?
Sim, não, no Primeiro Mundo talvez – os cinéfilos se dividiam. Um dos mais respeitados críticos do Rio aprofundava a questão: “Cinema é cinema, sala escura e tela grande; televisão é televisão, luz acesa e bate-papo. Além disso o celulóide (quem se lembra dele?) tem uma doçura, uma maleabilidade  que a fita de vídeo jamais alcançará. Inadequada, portanto, ao exercício da sensibilidade cinematográfica. Concluindo, nada mudará.”  
Bonito discurso, péssima futurologia. Aliás, em qualquer área, dentro da tecnologia ou não, prever é se candidatar ao ridículo. Quem não era velho nos anos 70 se lembra bem da certeza de que o sexo livre, sem qualquer amarra, chegara para ficar, para libertar quem tivesse a coragem de jogar fora os tabus cultuados pelos pais e avós.
De repente, no início dos 80, estoura a aides* e a festa perde espaço. Surgem, quem diria?, principalmente nos Estados Unidos, movimentos em favor do amor casto, da solteirice com virgindade.  
Mas, voltando ao computador, dia desses encontrei aquele jornalista que estreou na imprensa do Rio antes da máquina de escrever. Apesar do peso da idade, ele estava animadíssimo: “Em breve”, disse, “haverá nas redações máquinas tão inteligentes que os jornais sairão sem um erro sequer.”
Pura ilusão do matusalém. O leitor que gosta de reclamar pode ficar tranquilo. Os jornais serão sempre imperfeitos. E indispensáveis.

*Por que continuar grafando Aids, se a essa altura já esquecemos que se trata de uma sigla? Virou nome, por isso proponho que se escreva aides, a inicial  minúscula, como de qualquer outra doença (câncer, tuberculose etc ) e, para aportuguesar a palavra, a inclusão da vogal e na segunda sílaba.

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Não ao cigarro - Estou completando 33 anos sem fumar. Aleluia, parabéns para mim. Eu era uma chaminé, fumava de duas a três carteiras diárias, até o dia em que, pegando no sono, acordei com o meu pigarro. Parei e transformei o lema Evite o primeiro trago, dos aocoólicos anônimos, em Evite a primeira tragada.
Sou contra toda catequese – religiosa, ideológica, sentimental – toda, menos uma, a antifumo. Irmãos, não fumem. É o vício mais porco, fedorento traiçoeiro e perverso que existe. Estou exagerando? Acho que não, mas, se estou, salve o exagero. É um vício tão demoníaco que, 33 anos depois, sei que, se acender um cigarro e tragar, corro sério risco de começar tudo de novo. Abaixo essa praga.

sábado, 7 de maio de 2011

Aventura carioca

      Nove da noite, uma transversal da Tijuca, comecei a procurar vaga para estacionar. Não demoraríamos, coisa de minutos, em último caso deixaria o carro em fila dupla. Lá na frente, no meio da rua, apareceu um rapaz, me indicou uma vaga. Até aqui, comentei com Y., tem flanelinha, mas não vou dar mais que dois reais e fim de papo. Manobrei, desliguei o farol e o motor, acionei o segredo e desci. Y. já havia descido e caminhado para junto de uma vitrine.
Fechei a porta, contornei o carro. No instante em que pisei na calçada, o rapaz me chamou, tio, olha aqui, tio. Me virei, me vi diante de um revólver, a chave, tio, a chave se não aperto. Dois outros se aproximaram, ligeiro, tio, vou apertar. Olhei rápido para Y., às minhas costas, joguei o chaveiro, o assaltante o aparou no ar. Mandou um dos comparsas me revistar, vê se ele tem arma.
- Fique tranquilo – disse ao cara -, não ando armado.
- Legal.
- Posso ir?
- Não, tio – o do revólver gritou –, não se mexa, espere a gente se afastar.
De viés, vi Y. imóvel junto à vitrine, as mãos cruzadas no peito (para eles verem  que eu também não tinha como reagir, ela me explicou mais tarde). Os três entraram no carro (e se decidem me levar?), o do revólver no banco de trás.
- Tem alarme? – perguntou.
Resolvi não bancar o esperto: - Não. Tem segredo.
- E como é?
- Destrava com a chave menor. No chão, embaixo do tapete, à direita.
O que estava ao volante não conseguiu abrir o segredo. Coitado, precisava de ajuda. Com o consentimento do líder, desalojei o motorista, pus o carro em condições de arrancar, Voltei à calçada.
- Valeu, tio, valeu mesmo.
O carro já em movimento (e se o cara atira agora?), o que estava ao lado do motorista retribuiu a gentileza.
- A gente vai resolver uma parada, ali pela meia-noite pode procurar a máquina.
- Onde, onde?
- Nos arredores da Saens Peña. Tchau, tio.
Enfim livres, Y. e eu nos abraçamos. Humilhados mas felizes por continuarmos vivos. Para amenizar a depressão, liberei o humor: tio, tio, que sobrinhos desnaturados! Rimos e fomos à delegacia. Feita a queixa, voltamos para casa e, a uma hora da manhã, revirei a área da Saens Peña à procura do carro. Perda de tempo, só eu mesmo para confiar em bandido simpático.
Quatro dias depois, porém, a grande surpresa, coincidência inacreditável: o carro estava inteiro numa ruazinha perto da Praça da Bandeira, em frente ao prédio – sério, não é invenção – em que mora uma tia minha.
Em meio à alegria provocada por tamanha sorte, tive de sofrer os trâmites burocráticos, ir algumas vezes à polícia até conseguir o chamado atestado de recuperação do veículo.
- O senhor deve carregar esse papel junto com o documento de propriedade – recomendou o policial que me atendeu. – Ainda bem que tudo terminou da melhor maneira.
- Ainda bem – concordei , quase comovido. – E muito obrigado.
Só eu mesmo para confiar em policial simpático. Meses mais tarde, ao providenciar o novo IPVA, soube que estava usando um carro roubado. Sim senhores, a recuperação não havia sido registrada no computador da polícia. Mais um banho de burocracia, a delicadeza disfarçando a raiva – por favor, seria possível?, quando então?
No dia em que finalmente o rolo acabou, jantei e fui visitar um amigo em Botafogo. Estava estacionando, ouvi uma voz adolescente, tio, tio... Gelei. Olhei à esquerda, um meninote fingia que me ajudava. Pode deixar, tio, eu tomo conta. Paga quanto quiser, aqui quem manda é o freguês.
Respirei aliviado, saí assobiando Cidade Maravilhosa.

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O mesmo disco - Anos atrás, quando da aprovação da lei do divórcio, católicos e evangélicos anunciaram o fim iminente da família. Agora, com o STF assegurando o direito de união estável para os homossexuais, evangélicos e católicos gritam que a destruição da família não tarda. Quanta falta de imaginação! Haja paciência.

(Na verdade, em questões morais, mesmo os grupos religiosos mais avançados ficam, como diz um amigo meu, na retaguarda – na retaguarda da vanguarda).