sábado, 24 de setembro de 2011

Os velhos

Minha amiga Martina aparece e me convida para acompanhá-la na visita a uma tia, numa casa de velhos na Tijuca, mantida pela colônia judaica. Eu nunca estive em lugar assim, com coceiras de repórter aceito o convite.
Você sabe, Martina pergunta no caminho, que 27 de setembro é o Dia Nacional do Idoso? Digo que não e ela comenta o paradoxo, o velho brasileiro tem o seu dia no começo da primavera, estação por excelência ligada à juventude, prova disso as expressões flor da idade e na primavera da vida.
Chegamos à casa, encontramos um ambiente limpo e seguro, bonito e confortável, espelho do respeito dos filhos e netos aos que não têm mais nada a oferecer. Mas não é do respeito e da bondade dos fortes que quero falar, sim de nossa extrema fraqueza, a velhice.
Como a tia de Martina, a maioria dos internos já ultrapassou a linha da lucidez. Sentados ou deitados, em frente à janela ou à televisão, nos quartos ou no jardim, eles olham a ausência, o insondável. Um mastiga sem parar, o que lhe enche a boca vazia?  Outro ri e limpa os óculos, limpa os óculos e ri. Aquela mistura ídiche, português e russo. Esse não se cansa de ajeitar o boné e a gravata puída.
A visita não demora, saio calado, eu e eu. Amarelo, vermelho, paramos na esquina.
- E daí – Martina fala -, que barra, hem?
- Barra pesada – concordo.
- Com sinceridade - Martina, rouca -, não quero chegar a esse ponto. Se não morrer antes, que alguém se encarregue de... E você?
Balanço os ombros, sem palavra. Mas, dentro, jorra a certeza de que, se viver tanto – e tomara que viva -  não aceitarei antecipar a passagem. Me tirem as dores e desejarei ir até o fim do fim, nem um minuto menos. Olhos no vazio, me sujando, me molhando, resmungando, respirando. Afinal, quem garante que não há beleza e prazer nessa conclusão – nesse parto - que tanto choca os capazes?
Assim, aviso logo: estará cometendo assassinato o poderoso que, no futuro, eu inútil, decidir, em nome não sei do que, acabar comigo. Prisão nele, aos ferros! E se isso ocorrer num tempo de ditadura dos moços, em que a ordem de prisão for arquivada, não me renderei. Mesmo não acreditando em outra vida, virei assombrar o prepotente.
Embora não religioso, concordo com a Igreja na oposição à eutanásia (como, no geral, ao aborto). A Igreja, por achar que a vida é o maior bem do ser humano; eu, por achar que a vida é o meu único bem. E, religião fora, estou com Dostoievski – viver, viver, nem que seja num metro quadrado.
(Se em algum momento, eu impaciente, pedir que me abreviem a experiência, não me atendam. Será desvario de velho esclerosado. Valerá o que escrevi a cima).

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Para concluir esse papo estranho de primavera e velhice, um hiphip hurra aos velhos que continuam no batente, símbolo maior deles o grande Oscar Niemeyer aos 104 anos.

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Desobediência
Segundo dia de primavera, frio, garoa e vento. A natureza é, por natureza, desobediente.

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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)


A Sófocles
Meu pai morreu há dez anos, e ainda não consegui
                                                                   chorá-lo.
Minha mãe coninua viva, no entanto já lacrimejei
Muitas vezes ao imaginá-la morta.
Ruínas do teatro grego.
(março/87)

Geometria
O mundo é triangular.
Céu, terra, mar.

A vida é em espiral.
O bem vence e vira mal.

Quadrada é a morte:
NADA 
A      D
D      A
ADAN

  NA
  DA

N_A
D_A
(agosto/90)

Nem
O fim do mundo
será para todos.
Nem Shakespeare escapará.
(agosto/09)

sábado, 17 de setembro de 2011

Elis

Eu trabalhava na sucursal carioca da Folha de S. Paulo, o chefe de reportagem me escalou para entrevistar Elis Regina e Ronaldo Bôscoli, que estavam de casamento marcado (o Google diz que foi em 1967, então foi). Ela vinha ao Rio acertar os detalhes da cerimônia, o chefe me passou o telefone do noivo e a clássica recomendação: vire-se. Liguei, Ronaldo, desmentindo a fama de grosso, me atendeu bem. Marcou a entrevista para as 11 horas de sábado, e me deu seu endereço, em Ipanema.
O fotógrafo e eu chegamos pouco antes das 11, o próprio Ronaldo nos abriu a porta. Disse que Elis não demoraria a vir e sentou-se diante de uma máquina de escrever portátil - a mesa das refeições, redonda, era também a mesa de trabalho. A seus pés (memória ou fantasia?) se esparramava um cachorro de bom tamanho.
Tentei um papo descontraído - como é isso de de repente um solteirão (Ronaldo era 16 anos mais velho que Elis), que namorou as principais cantoras do Brasil, se casar até no religioso? – ele balbuciou qualquer coisa e começou a datilografar. O silêncio só não pesou porque surgiu uma senhora – minha sogra, Ronaldo apresentou – que nos deu atenção. Assim, enquanto o fotógrafo clicava, eu entrevistava a mãe de Elis. “Minha filha”, ela disse, “já é a maior cantora do Brasil.”  
Nesse exato momento, a estrela apareceu. Beijou o noivo, cumprimentou os visitantes, repreendeu a mãe: “Não, senhora, a maior cantora do Brasil é a Elisete Cardoso”. E, para nós: “Por favor, não liguem, mãe é mãe.” Deixou-se fotografar ao lado do quase marido e da mãezona, disse que a fama de mulherengo de Ronaldo não a incomodava, pois sabia que ele hoje era outro, e sugeriu que eu e o fotógrafo a acompanhássemos até a Capela Mayrink, na Floresta da Tijuca, onde seria o casamento. Precisava medir a nave para encomendar a decoração, nós a ajudaríamos e, ao mesmo tempo, arremataríamos a entrevista.
Subimos para a floresta no fusca de Elis (ou seria de Ronaldo?). Medimos a nave da capela, voltamos pela Avenida Niemeyer, paramos na casa em que o casal moraria (“esta casa é do Juca Chaves”, ela contou, “nós alugamos”) e descemos de volta para Ipanema. Conversando sempre. Então, já na praça em que Ronaldo morava, um ônibus elétrico (chifrudo, no jargão popular) fechou o fusca. Foi o que faltava para aquele sábado se tornar inesquecível. Num pulo, Elis pôs meio corpo para fora do carro e gritou para o motorista abusado: “Só porque sou mulher? Vá tomar atrás do saco.”
Reacomodou-se ao volante, se dobrando de rir: “Sou ou não sou uma moça fina?”

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O bom egoísmo
Cedo descobrimos que o egoísmo é um sentimento fortíssimo, invencível por mais que o enfrentemos. O que nem todos percebemos é que há o bom egoísmo, como há o bom colesterol. O bom egoísmo aflora nos atos de amor e doação, como por exemplo os praticados pelos voluntários que socorrem os atingidos por uma catástrofe. Basta ouvi-los: eles falam com emoção do prazer e da alegria de ajudar o outro, da sensação de plenitude ao fazer algo para alguém sem esperar alguma vantagem. Ou seja: prevalece o “eu”, o gozo de ter-se dado. E, ao contrário do que possa parecer, é ótimo que seja assim, pois esse tipo de egoísmo nos torna melhores. (Dentro desse raciocínio, já imaginaram o tamanho do egoísmo de uma Teresa de Calcutá? Um gigante, salve ele). 

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A Merkel de Berlusconi
Que o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, é meio (ou inteiro?) bandido, a gente sabe há muito tempo. Mas, reconheça-se, é um bandido engraçado. Num telefonema interceptado pela Justiça, ele chama a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, de bunduda incomível. Não dá para deixar de rir. Longe das feministas radicais, naturalmente.

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Primavera
Daqui a seis dias, termina o inverno. Muitos preferem o Rio no outono, eu na primavera. Que chegue esbanjando beleza, aleluia.   

sábado, 10 de setembro de 2011

Em família

 A crônica abaixo foi publicada em meados de setembro de 1997, duas semanas depois da morte da princesa Diana. Ao reencontrá-la, dias atrás, resolvi oferecê-la, sem qualquer alteração, aos amigos do BP. Ao passado, portanto:


A vinda do papa ao Rio, o real e a dentadura, a regulamentação do aborto em caso de estupro ou de risco de vida da mãe, a escolha de Atenas como sede das Olimpíadas de 2004, a nova lei eleitoral, as últimas novidades da informática. Os assuntos se misturavam, o almoço familiar corria animado. Às tantas, alguém mencionou os funerais de Diana, visto ene vezes por todos.
Como acontece quando se comenta um filme de sucesso, cada um lembrou a cena que mais o tocara – a reverência da rainha diante do caixão da ex-nora, o discurso certeiro de Charles Spencer, o canto contido de Elton John, os aplausos do povo à passagem do féretro, a cabeça sempre baixa do príncipe William, futuro rei.
A rememoração do espetáculo fúnebre foi interrompida pela única criança da casa, uma garota de cinco anos. Afinal, ela perguntou compenetradíssima, a princesa estava mesmo grávida?
Os adultos se olharam esbugalhados. Onde você ouviu isso?, a mãe cobrou. No colégio, a pequena respondeu. E insistiu: Diana carregava ou não o irmão do rei na barriga? Maneiroso, o pai lembrou que Os 101 Dálmatas, o filme com Glenn Close, estava pronto para rodar na sala de TV, você não quer assistir de novo? Ela queria. Vocês só falam bobagem,  a filha acusou, eu prefiro ver a Cruela, adeus.
Livres da enxerida, mas a partir do que ela tinha perguntado, os adultos repisaram a história, pingada nos jornais, de William ganhar um irmão mestiço e muçulmano. Um primo, o intelectual da família, fingiu apreensão: anteontem a irriquieta Margareth, ontem os Beatles, hoje uma lady mundana, humanitária e marqueteira, amanhã um herdeiro moreno, de cabelo crespo; em que beco o grande império vai parar?
Houve risos, mas fracos, era hora da sobremesa e as atenções se concentraram no pudim de clara que a empregada acabara de pôr no centro da mesa. Foi aí que a garota, saltando de surpresa da sala de TV, disparou outras duas perguntas: e se Diana tivesse na barriga não um menino, mas uma menina? E se a menina e o rei se apaixonassem, como os irmãos da novela do canal mexicano?
Fez uma careta e desapareceu, voltou aos dálmatas. Um incesto real?, escandalizou-se a prima solteira, que se orgulhava de ter recusado um egípcio de Alexandria, talvez parente dos Al Fayed. A mãe da mãe da garota, formada em Letras, mas do lar, indagou: há incesto em Shakespeare? Niguém se lembrava. Esperto, o intelectual da família fechou a questão: em Shakespeare há de tudo, o mundo, o céu, o inferno e mais um pouco. O avô balançou a cabeça e repetiu a sobremesa. Dos deuses esse doce, disse se lambendo.
Da sala de TV, vinham latidos inteligentes.

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Segundo pesquisas, em julho 68% dos britânicos já admitiam o casamento do príncipe Charles com Camilla Parker-Bowles, e que, portanto, mesmo sendo a mocinha da história, Diana terminaria derrotada pela rival. De repente, vem a morte e põe tudo de pernas para o ar. Agora, qual o futuro de Camilla?
No meio de todo esse drama, fica apenas uma certeza: Charles virou definitivamente sapo. Case-se ou não com a amante, sente-se ou não no trono, não tem a mínima chance de cura.

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11/9/2001
  Eu trabalhava em casa, o telefone tocou, ligue a TV, disse minha então mulher, o mundo está acabando em Nova York.  

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Sinceridade
     Há dias, dois fabricantes de agrotóxicos admitiram publicamente que seus produtos matam. Não é de apalermar? Nessa batida, a sinceridade acabará como regra nº 1 nos grandes negócios. Reajamos enquanto é tempo, temos uma tradição de esperteza a preservar.

sábado, 3 de setembro de 2011

Brasiliana

Em que momento o Peru se ferrou?, indaga Mario Vargas Llosa em Conversa na Catedral. Às vésperas de mais um 7 de Setembro, repudio o ufanismo oco, o cacoete de quem está no poder, e pego emprestada a pergunta do romancista peruano. Quando o Brasil tomou o caminho da perda? Já durante a primeira missa ou ao ser dividido em capitanias hereditárias? Às margens do Ipiranga ou com o golpe militar de 15 de novembro de 1889?
Quando, quando? Em que encruzilhada caímos na vereda cheia de pedras e desníveis? Em que situação a consciência do provincianismo incomodou tanto que passamos a repetir baboseiras como somos os maiores, conosco ninguém pode, nada como ser brasileiro?
O jeitinho, esse vírus invencível, ante que obstáculo o adotamos? Que ato de desumanidade provocou horror tão grande, que passamos a nos proclamar um povo cordial? Frente a que humilhação inventamos que somos livres de preconceitos?
Que manifestação de insegurança nos levou a nacionalizar Deus? Que presente nos frustrou a ponto de nos considerarmos o país do futuro? Um futuro jamais alcançado, ilusório como a linha do horizonte.
Pois diante desse nunca-chegar, cansado e descrente da ideia de que amanhã será melhor, faço um pequeno pedido aos nossos poderosos: não exagerem na mentira; mintam o estritamente necessário, só mesmo em casos extremos. Quem sabe assim, enfim nos aproximemos dos países mais bem-sucedidos, aqueles que, por inveja, desdenhamos.

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(Se, depois de ler o meu desabafo, você estiver papagaiando velhos lamentos do tipo ah, se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses, ou nosso problema é esse povinho, cale a boca. Simplesmente, você não entendeu nada.)

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De qualquer modo, é inegável que os governantes de hoje, eleitos pelo voto popular, mentem menos (pouco menos) que os estrelados do regime militar, ainda tão próximo. Naquele tempo, enquanto nos porões os gritos dos torturados se multiplicavam, aqui em cima os palacianos diziam sem  gaguejar que o Brasil era uma ilha de calma e prosperidade. Ame-o ou deixe-o, os mais velhos se lembram. E, por favor, não esqueçam. Não esqueçam e, sempre que couber, ponham os jovens a par do terror de ontem.
Terror muitas vezes embrulhado no cinismo. “Nosso sonho mesmo”, me disse em plena tirania um brigadeiro linha-dura, “é voltar para os quarteis. Infelizmente, o povo ainda não nos liberou.” Coitado, morreu antes de o último general presidente deixar o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.

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Hoje devemos pensar com menos pressa nos sem-Brasil, milhões de pessoas que vivem (vivem?) em circunstâncias muito piores que os sem-terra, os sem-teto etc. Os sem-Brasil, ou sem-tudo, não desfrutam da mais mínima cidadania. Não têm condição de comer nem um prato de farinha.

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Também é uma boa hora para lembrarmos Darcy Ribeiro: “Dói (cito de memória) perceber que um país privilegiado como o Brasil não deu certo. Como isso aconteceu, como?”

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Citando outro brasileiro de respeito, Vinícius de Moraes: Vontade de beijar os olhos de minha pátria/De mimá-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos.../Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias/De minha pátria, de minha pátria sem sapatos/E, sem meias, pátria minha/Tão pobrinha.

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Tadinhos
E os doutores do Judiciário estão contrariados porque o orçamento federal de 2012 não prevê reajuste salarial para eles. Tadinhos, sempre tão esquecidos, o governo só dá atenção aos aposentados do INSS.

       No mais, vale recorrer à Bíblia: “O rico comete injustiça e ainda reclama; o pobre é injustiçado e ainda pede desculpas.” (Eclo, 13,3)