Minha amiga Martina aparece e me convida para acompanhá-la na visita a uma tia, numa casa de velhos na Tijuca, mantida pela colônia judaica. Eu nunca estive em lugar assim, com coceiras de repórter aceito o convite.
Você sabe, Martina pergunta no caminho, que 27 de setembro é o Dia Nacional do Idoso? Digo que não e ela comenta o paradoxo, o velho brasileiro tem o seu dia no começo da primavera, estação por excelência ligada à juventude, prova disso as expressões flor da idade e na primavera da vida.
Chegamos à casa, encontramos um ambiente limpo e seguro, bonito e confortável, espelho do respeito dos filhos e netos aos que não têm mais nada a oferecer. Mas não é do respeito e da bondade dos fortes que quero falar, sim de nossa extrema fraqueza, a velhice.
Como a tia de Martina, a maioria dos internos já ultrapassou a linha da lucidez. Sentados ou deitados, em frente à janela ou à televisão, nos quartos ou no jardim, eles olham a ausência, o insondável. Um mastiga sem parar, o que lhe enche a boca vazia? Outro ri e limpa os óculos, limpa os óculos e ri. Aquela mistura ídiche, português e russo. Esse não se cansa de ajeitar o boné e a gravata puída.
A visita não demora, saio calado, eu e eu. Amarelo, vermelho, paramos na esquina.
- E daí – Martina fala -, que barra, hem?
- Barra pesada – concordo.
- Com sinceridade - Martina, rouca -, não quero chegar a esse ponto. Se não morrer antes, que alguém se encarregue de... E você?
Balanço os ombros, sem palavra. Mas, dentro, jorra a certeza de que, se viver tanto – e tomara que viva - não aceitarei antecipar a passagem. Me tirem as dores e desejarei ir até o fim do fim, nem um minuto menos. Olhos no vazio, me sujando, me molhando, resmungando, respirando. Afinal, quem garante que não há beleza e prazer nessa conclusão – nesse parto - que tanto choca os capazes?
Assim, aviso logo: estará cometendo assassinato o poderoso que, no futuro, eu inútil, decidir, em nome não sei do que, acabar comigo. Prisão nele, aos ferros! E se isso ocorrer num tempo de ditadura dos moços, em que a ordem de prisão for arquivada, não me renderei. Mesmo não acreditando em outra vida, virei assombrar o prepotente.
Embora não religioso, concordo com a Igreja na oposição à eutanásia (como, no geral, ao aborto). A Igreja, por achar que a vida é o maior bem do ser humano; eu, por achar que a vida é o meu único bem. E, religião fora, estou com Dostoievski – viver, viver, nem que seja num metro quadrado.
(Se em algum momento, eu impaciente, pedir que me abreviem a experiência, não me atendam. Será desvario de velho esclerosado. Valerá o que escrevi a cima).
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Para concluir esse papo estranho de primavera e velhice, um hiphip hurra aos velhos que continuam no batente, símbolo maior deles o grande Oscar Niemeyer aos 104 anos.
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Desobediência
Segundo dia de primavera, frio, garoa e vento. A natureza é, por natureza, desobediente.
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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)
A Sófocles
Meu pai morreu há dez anos, e ainda não consegui
chorá-lo.
Minha mãe coninua viva, no entanto já lacrimejei
Muitas vezes ao imaginá-la morta.
Ruínas do teatro grego.
(março/87)
Geometria
O mundo é triangular.
Céu, terra, mar.
A vida é em espiral.
O bem vence e vira mal.
Quadrada é a morte:
NADA
A D
D A
ADAN
NA
DA
N_A
D_A
(agosto/90)
Nem
O fim do mundo
será para todos.
Nem Shakespeare escapará.
(agosto/09)
e minha mãe morreu há dez e nunca chorei.
ResponderExcluirMeu pai nunca morreu pra mim.
Minha mãe tem quase noventinha com periodos de lucidez e de fora do ar e a gente vem conseguindo manter ela em casa com todo cuidado mas tem horas que é muito dificil. É uma situação complicada, se a Carla não fosse uma esposa dedicada eu já tinha mandado a velha pruma casa de idosos, aqui em Santos tem umas duas ou três muito boas. Mas enquanto der, fica como está.
ResponderExcluirBeijo do Esdras e da Carla.
Gostei bastante do prosema Geometria.
ResponderExcluirVisitante.
Certa vez ouvi o seguinte:
ResponderExcluir"Viver é morrer de lá prá cá.
Morrer é nascer de cá prá lá."
Penso que seja assim afinal, envelhecer é enfrentar várias mortes e ainda assim viver, viver, viver...
Bonito, Célia. Bonito mesmo.
ResponderExcluirMarco Antonio,
ResponderExcluirAgora você sabe: embora ausente,sempre acompanhei seu blog desde o inicio.
E esse "Os velhos" me trouxeram a coragem de fazer meu primeiro comentário.
Muito, muito lindo demais!!!
Caramba, Rita, até que enfim... Fico contente com tua estreia.
ResponderExcluirMagaysíssimo, me emocinei com o teu texto dos velhos. Eu também quero viver até não dar mais, nada de abreviar.
ResponderExcluirComo já te disse, adoro teus prosemass. O Geometria é o máximo.
Teresoca, vou te contar o que aconteceu ontem à noite: o Leandro meu ex se livrou um tempo da tal noiva baiana e me procurou como amigo mas daí já viu, acabamos na cama, foram duas horas de muito prazer e gozo. Depois ele foi embora e eu fui dormir contente. Quando eu achar outro namorado vai ser só ele mas enquanto não acho estou aí até pro Leandro gostoso.
ResponderExcluirBeijo a todos.
Gay, no comentário que mandei pra Teresoca esqueci de colocar minha opinião sobre a velhice, eu ao contrário de você não quero prolongar a vida não, quando não der mais pra viver mais ou menos bem, quero que alguem se encarregue de me livrar do sofrimento.
ResponderExcluirCosme, a inconstância dos homens é complicada. Vão e voltam sem a menor cerimônia. Não sabem o que querem ou então querem tudo ao mesmo tempo ! O negócio é não se entregar de vez.
ResponderExcluirConcordo com vc qto a não prolongar o sofrimento. Não quero vegetar, servir de adubo.
Pra nós todos um comentário que ouvi outro dia " não leve a vida muito a sério. Afinal não vamos sair vivos dela ".
ResponderExcluirPara mim a melhor parte desta última postagem do Magay é justamente o finalzinho, o prosema NEM. Delicioso.
ResponderExcluirA Luzia tem razão: "Nem" é um ótimo prosema, um achado. No dia 25 citei "Geometria", hoje acrescento "Nem".
ResponderExcluirVisitante.
Já eu gosto dos textos mais longos. Prosemas são brincadeirinhas de criança. Um joguinho bobo.
ResponderExcluirNão, Teresa, os Prosemas não são brincadeira de criança nem joguinho bobo. São, como eu digo ao postá-los, exercícios de escrita. Exercícios que às vezes - às vezes - têm alguma qualidade.
ResponderExcluircaramba ! mas tenho o direito de não achar nada demais. Exercício de escrita ? sei ... mas continuo sem gostar.
ResponderExcluirClaro, Teresa, que você tem o direito de não gostar. Direito sagrado, aliás.
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