sábado, 26 de novembro de 2011

Dalton

Eu tinha 6/7 anos, morava em Curitiba, na Rua Marechal Floriano (uma das mais conhecidas da cidade), defronte ao clube dos cabos da PM (ou algo assim) e costumava brincar com um menino de minha idade, José, que vivia numa mansão a meia quadra de minha casa. Mansão com bom quintal, era lá que nos esbaldávamos. José, filho temporão, tinha três irmãos já adultos, um rapaz sem o braço esquerdo (acho que era o esquerdo), perdido, se não me engano, na serraria do pai (com um braço só ele dirigia e jogava futebol) e duas moças, uma de cabelos claros, a outra de cabelos castanhos. Esta namorava um sujeito seriíssimo, de óculos e sempre de terno (azul-marinho ou preto) e gravata. De vez em quando o cara perdia um pouco do ar compenetrado e, em meio a um comentário qualquer, passava a mão na cabeça da gente.
Minha família se mudou para outro bairro, não tão perto da mansão de José, deixei de vê-lo. Fomos nos reencontrar anos depois, já adolescentes-quase adultos, e emendamos um papo comprido. Lembrança daqui-lembrança dali, e aquele cara de óculos, terno e gravata que namorava tua irmã? José soltou uma boa risada, pois ele casou com minha irmã, e você sabe quem é ele?

Ali pelos anos 70, numa de minhas idas a Curitiba, resolvi entrevistar Dalton Trevisan. Eu sabia que ele não dava entrevistas, mas tinha duas armas para dobrá-lo. Procurei-o na empresa da família, as tradicionais Lojas Trevisan (Lojas ou Casas?), e me apresentei: jornalista no Rio, com algumas incursões na área cultural, havia sido criado – a primeira arma – em Curitiba, lera quase todos os seus livros, conhecia bem os cenários... Ele, sem grosseria, me disse que não dava entrevistas, por favor...
Sacando então a segunda arma, muito mais poderosa que a primeira, lhe contei, sem os detalhes aqui necessários, a história que abre esta crônica. Dalton sorriu, que interessante, disse, o menino que brincava com o José era você, parece Borges. Senti uma ponta de orgulho, personagem borgeano, e, certo de que vencera a parada, fiz menção de puxar a caneta e o bloco de notas. Aí, de novo sem grosseria, o mestre repetiu que não dava entrevistas. E, me despachando, disse que falaria de mim ao cunhado José, como é mesmo o teu nome?
Saí triste, caminhei por ruas e praças palmilhadas pelo Vampiro de Curitiba. Me reanimou a ideia de que aquela havia sido apenas a primeira tentativa, um dia eu ainda entrevistaria Dalton Trevisan. Esperança que, transcorridos tantos anos, em certos momentos renasce.

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Agilidade
Caminhava cedo no Aterro, vi um mendigo se exercitando na grama. Fez uma série de abdominais e deu cinco ou seis cambalhotas seguidas. Agilíssimo. O inusitado é que ele cambalhotava para trás. Seria a expressão (inconsciente) do que lhe acontecera na vida?

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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)


Fazendo
Carta se data
Barata se mata
Grão se cata.
Ideologia se prega
Imposto se sonega
Embrulho se carrega

E a poesia? Poesia se faz
Mas sem rima fácil, Barrabás
(abril/87)

Total
No mundo
há de tudo.
E em tudo,
de tudo.
Nada sobra,
sobra nada.
(janeiro/97)

Trocaletra
Não gagueje. Qual seu adversário?
O elitismo ou o etilismo?
(novembro/02)

sábado, 19 de novembro de 2011

Grande Otelo, Macunaíma

Nos anos 60 (bota tempo nisso), passei a acompanhar PG, colega de redação nas idas a um barzinho da Avenida Princesa Isabel (divisa de Copacabana e Leme), ponto de jornalistas, mulheres (a maioria, mulatas) que trabalhavam em shows de boate e um ou outro ator (e atriz) de algum nome. Entre esses, o de maior expressão era Grande Otelo, que tinha vivido o auge da carreira no antigo cassino da Urca e nas chanchadas de Atlântida, em dupla com Oscarito.
Cupincha de PG, ele costumava sentar-se à nossa mesa. Sóbrio, tinha boa conversa. Bêbado, ficava chato ou agressivo. Certa feita, porém, embora de pileque, apareceu doce e alegre. O fato, contou, era que Joaquim Pedro de Andrade ia filmar Macunaíma, o livro de Mário de Andrade, e o chamara para viver o herói sem nenhum caráter. Estava por demais envaidecido, não escondeu, afinal, ser dirigido por Joaquim, um dos expoentes do Cinema Novo, mostrava que não fora esquecido. Havia no entanto um problema, confidenciou, que precisava ser resolvido logo: ele não conhecia o livro e era imprescindível lê-lo.
“Eu tenho”, me adiantei, “te empresto”. Grande Otelo, o olhar iluminado, me apertou o braço, “sério, você me empresta”? Sim, confirmei, e o aperto no braço aumentou. Trocamos tapinhas amigáveis, combinamos quando eu lhe entregaria o livro. Pouco depois ele foi embora, PG bateu firme, como se Grande Otelo fosse seu desafeto: “Babaca, otário, você vai trazer o livro, o crioulo vai te devolver no dia 30 de fevereiro, esperto ele, por que não vai a uma livraria e compra?” Tomou dois goles, mudou o discurso: “Você não percebeu que o cara está bêbado?, aposto que essa história de filme com o Joaquim Pedro é lorota, lorota de bêbado, de ator que já morreu e não se conforma, você vai perder o livro por nada.” Dei de ombros, “dane-se, vou emprestar e pronto, prometi, vou cumprir.”
Se Grande Otelo leu Macunaíma, não sei. Sei é que me devolveu o livro. E, como todos vocês, sei também que ele brilhou no filme, grande filme do talentoso Joaquim Pedro de Andrade. 

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Já que falei no filme de Joaquim Pedro, não posso esquecer de citar Paulo José, que fez o herói sem nenhum caráter em sua fase branca. Tendo começado como galã, Paulo José foi se firmando, até se tornar um dos nossos bons atores. Em Macunaíma, ele já se mostra afiado, pronto para batalhas maduras.

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O cão e sua dona
Gente na rua recolhendo - a mão metida em saquinhos plásticos - fezes de cachorro é comum. Espantoso é o que vi dias atrás: uma mulher limpava com um pedaço de papel higiênico (de boa marca, imagino) o fiote do seu querido cão. Ela obesa, cilíndrica, ele pequeno e fino; ela curvada, a bundarra para o sol, os dedos na futucação, ele compenetrado, senhor da calçada. Realmente, não há limites para o grotesco.

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A vaia
      Ontem no Palácio do Planalto, na emocionante cerimônia de assinatura da lei que criou a Comissão da Verdade, que vai apurar a violação de direitos humanos durante a ditadura, houve momentos de aplausos entusiasmados. Só os três comandantes militares se mantiveram impassíveis. Como se estivessem sendo vaiados. E estavam, foi uma vaia interna. Tadinhos...

sábado, 12 de novembro de 2011

Duas historinhas quase sem sexo

Reis de Roma
Tínhamos nos visto três vezes no boteco da esquina, os dois calados a esvaziar uma garrafa de cerveja, eu numa ponta do balcão, ele na outra. Pálido, magro, de óculos e rabo de cavalo. Na quarta vez, as pontas do balcão ocupadas, nos ajeitamos no meio, lado a lado. E, lá pelas tantas, não me lembro qual o assunto, começamos a conversar. Me lembro é que de repente, e também não sei como, o papo enveredou para os impérios do mundo. O império americano, o inglês, o austro-húngaro – sem nada combinado, deslizamos nessa ordem inversa, de hoje para ontem, de ontem para anteontem.
Mais cerveja nos copos, de anteontem para eras remotíssimas, o cara conhecia História, passamos pelos impérios de Carlos Magno e Alexandre da Macedônia, acho que fizemos ligeiras escalas em potências do velho Oriente, e enfim aportamos em Roma. A Roma Antiga, dos Patrícios e plebeus, do Coliseu e as termas, dos banquetes e os bacanais, a metrópole e as províncias – o Poder Romano, presente em quase todo o mundo então conhecido, nos arrebatava, falávamos pelo cotovelos, vamos tomar mais uma?
Tomamos bem mais que o habitual. Mas tudo acaba (até o Império Romano acabou), chegou a hora de irmos embora. Pagamos a conta e, enquanto, no pilequinho, trocávamos um longo abraço, perguntei ao meu recente amigo como se chamava.
Ele, na inocência: - César. E você?
Eu, distraído: - Marco Antonio.
Levou um tempinho, dois ou três segundos, para engrenarmos espalhafatosa risada.
- Será possível? – falei.
- Caramba – ele atônito, como eu. – É isso, somos os reis de Roma.
- De Roma – emendei – e da Cleópatra, nós dois...
-... comemos ela e, se ela estivesse aqui...,
- ... comíamos de novo.
- Sim, sim, na santa paz.
- Na santa paz, claro.
Rimos outro tanto, bem cafajestes, e cada um tomou seu rumo.


Milagre, milagre
Anoitecia, ele sentiu pontadas no ouvido esquerdo. Com medo de as pontadas virarem dor, e a dor não deixá-lo dormir, foi à emergência do Miguel Couto. A médica que o atendeu diagnosticou otite e receitou um antiinflamatório. Dormiu sem dor mas, na manhã seguinte, acordou surdo.
Passaram-se dois dias, a surdez não regrediu. Ele bateu então no consultório de um otorrino em Copacabana, um bambambã, recomendado por uma amiga médica. Conversa, exame, audiometria, e a má notícia: o ouvido interno (foi essa a expressão usada pelo otorrino, ouvido interno) de repente parara de receber sangue, o que havia causado um enfarte, uma isquemia, e, com a isquemia, a surdez. O doutor fez uma careta e desferiu o segundo golpe: a chance de recuperação é de 50 por cento e não adianta você se angustiar, se houver recuperação será demorada. Marcou nova consulta para dali a 15 dias, quando repetiria a audiometria, e esticou a mão.
Não adiantava se angustiar, no entanto ele se angustiou. E três dias depois a angústia cresceu, a surdez alcançara também o ouvido direito. Com súbito medo do otorrino que o atendera, resolveu procurar outro. Foi a uma policlínica em Botafogo, acabou nas mãos de um médico quase adolescente, que poderia ser filho do mestre de Copacabana. Suspirou derrotado, estou frito, pensou, esse fedelho... Nem falou dos antecedentes, a pane no ouvido esquerdo, deixou-se examinar feito um boneco.
Meu amigo, o fedelho foi rápido, não é nada grave, apenas secreção, assim que a secreção se escoar, pode levar dias, sua audição se normalizará. Achou o diagnóstico paupérrimo, de charlatão. Tentou sorrir, não conseguiu, a vontade era esmurrar o medicozinho. Saiu sem se despedir.
Irritação e desespero, voltava ou não ao bambambã? Sim, voltaria, fazer o quê?, não, não voltaria, por que ele?, no Rio havia carradas de otorrinos. Sim-não, não-sim, indeciso, cultivou a ideia de se acostumar à surdez, afinal, tem tanta gente que não ouve e vive bem.
E, no tranco, a vida continuou. Surda. Até que uma madrugada ele acordou com os gemidos do casal vizinho, milagre, milagre, estou ouvindo. Aos gemidos juntou-se a voz do fedelho, assim que a secreção se escoar...
Pulou da cama, o casal vizinho entrava no paraíso, enveredou para o banheiro, há quanto tempo não se masturbava de madrugada?, mas, no meio do corredor, levado por estranha força, desviou para a sala. Ligou o rádio, caiu extasiado na poltrona: no ar, Variações sobre um tema de Haydn. Esqueceu o ateísmo de décadas, rezou pela alma de Johannes Brahms.



sábado, 5 de novembro de 2011

Oito bocas, um assunto

Você sabe, o problema do casamento é a convivência, o dia a dia.
Todo mundo diz isso, mas é claro, deve haver exceções.
Será?
Você e a Bia, por exemplo, quantos anos de casados?
Vinte e quatro.
Vinte e quatro anos, um bom tempo, e vocês vivem bem, vocês transmitem...
... o que, transmitimos o quê?
Sei lá, vocês...
Nós, nada, não seja bobo. Vou te fazer uma confidência...


E daí, morena, na batalha?
Como sempre. O que que tu manda?
Vamos nos amassar?
Por que não?
Indo ao ponto: quanto você...?
Que tipo de serviço?
O que pintar.
Não gosto de tratar preço aqui fora. Vamos entrar?
Em que hotel? Esse ali ou aquele da esquina?
O da esquina. A gente entra junto ou tu quer que eu vá primeiro?


De novo, cara, você acha que sou otária?
Por favor, não perca a classe. Da última vez você prometeu não repetir o piti.
Dane-se a classe, agora a cada quinze dias você vai a Beagá e quer que eu...
Acredite, amor, é o trabalho. Fui escalado pra fiscalizar a filial de Minas,
Filial de Minas, filial de Minas...
não posso fazer nada.
... não sou burra, essa filial de Minas tem peito e...
Chega, vou desligar.
Alô, alô, covarde!


Já te disse, eu também quero, mas tenho medo.
Boba, medo de quê?
Os velhos lá embaixo, e se de repente alguém sobe pra cá?
Que nada, estão jogando pôquer, quando jogam pôquer eles esquecem da gente.
Podiam esquecer sempre. Chatonildos.
Vamos, mostra.
Mostro, mas você fica aí. Só olhar, não vale passar a mão em mim.
Juro, só olho.
Jurou, tem de cumprir. Fique de costas e conte até 30. No 30 você vira pra mim.
Até 30? É muito.
Ou até 30 ou não mostro.
Tá certo. 1-2-3..........7-8-9..........12-13-14..........


 18-19-20..........23-24-25..........28-29-30, vou olhar, posso?
Pode.
Uau. Você é a primeira mulher que eu vejo assim.
Nem tua mãe?
Ah, ela não conta.
Nem mãe nem pai. Eu também já vi meu pai.
E a internet também não conta. Você é a primeira mulher que eu vejo assim ao vivo.
Gostou?
Nunca vou esquecer.
Agora chega, é a tua vez. Mostra. Conto até quanto?
Não precisa contar, olha. Olha logo.
Bonito.
Quer pegar?


Oi, amor, chegou bem?
Cheguei, amor, o voo foi tranquilo.
Me perdoa?
Perdoar o quê?
Você sabe, o piti, a ciumeira.
Tudo bem, mas não repita, promete?
Prometo. E você está fazendo o quê?
Vendo televisão, fazendo hora pro jantar.
E depois do jantar, vai aonde?
Em parte alguma. Janto no hotel mesmo e subo pro quarto. TV até a hora de dormir.
E vai pensar em mim?
Claro, amor, eu sempre penso em você.
Pense bastante... daquele jeito.
Diga, eu gosto quando você diz.
Fazendo teatrinho. Pense em mim fazendo teatrinho.
Diz mais.
Você faz aí, eu faço aqui. Um teatrinho bem gostoso, combinado?


Que tal, gostou?
Gostei. O hotel é ainda mais xexelento do que eu imaginava. Nota dez.
Dez pra você também, você foi perfeita. Lá fora e aqui dentro, na hora agá.
Não fui não. Aquele papo de não tratar o preço na calçada soou falso.
Você acha?
Claro, a profissional de verdade acerta a grana antes de entrar no hotel.
É, deve ser.
Vacilei. Da próxima vez corrijo essa falha.
Falou. Você dá o preço, eu pago sem discutir.
Mas, mesmo com o vacilo, valeu...
Que bom.
... estou me sentindo a piranha, bem como eu queria.
Parabéns.
Vamos lá em casa tomar um vinho pra comemorar.


... uma confidência que jamais fiz pra qualquer um dos meus amigos.
Caramba, que privilégio o meu.
Pois é, então ouça: eu não como a Bia há uns dez anos.
Não acredito.
Acredite, é a pura verdade.
E você tem outra?
Várias, tenho várias. E não deixo nem uma na mão.
Haja energia.
Energia não me falta, mas da Bia enjoei. Dez anos, faz dez anos que não como ela.
Bem, com todo respeito, ela é uma mulher interessante, alguém deve comer.
É, alguém deve comer. Que ela e quem come ela tenham muito prazer. Amém.