Cabelos úmidos, pele cheirosa
Com menos de um ano de jornalismo - um foca, na gíria da profissão - ele tremeu ao saber que iria entrevistar Fulaninha Silva, cantora de nome nacional e que, havia seis semanas, tinha sua moderna interpretação de um clássico de Noel Rosa no topo da parada de sucessos. O G. caiu doente, o chefe informou, e nós precisamos dessa entrevista pra amanhã, sinto muito, você foi o escolhido, é a sua chance de mostrar a que veio. Disse que o foca iria sozinho, sem fotógrafo, Fulaninha fora fotografada na noite anterior, fez ligeiras recomendações e soltou uma risada satânica.
Ao chegar à casa de Fulaninha, o escolhido ainda ouvia a risada do chefe. Passou por um segurança, entrou na sala conduzido por uma empregada de uniforme, sentou-se no sofá indicado. A cantora apareceu logo, os cabelos úmidos, a pele cheirosa. Sussurrou oi, você é tão jovenzinho, sentou-se à esquerda do repórter e, ligado o gravador, começou a falar de si - a vocação, a carreira, o sucesso, os fãs, as viagens.
A pele cheirosa, os cabelos úmidos, a voz rouca. De repente fez uma pausa, saltou até a vitrola (era no tempo das vitrolas), pôs no volume certo a canção que todo o país cantava e voltou deslizante para o sofá. Mas não se sentou. Ficou de pé em frente ao nosso herói, os quadris na altura dos olhos dele, a ondular o corpo bem devagar, enquanto acompanhava baixinho o que o disco – ela – cantava.
E agora, pensou o jovenzinho, o que faço? Avanço ou me seguro, me seguro ou avanço? O medo de estar fantasiando a situação, de agarrar a dona e ser rechaçado, que é isso, garoto, enlouqueceu?, de ser denunciado por ela e perder o emprego conseguido a duras penas, segurou-se. Fingiu a mais extrema naturalidade, encerrou a entrevista com ar de santo.
Chegou ao jornal taquicárdico e, antes de se pôr a trabalhar, tentou contar ao chefe o que vivera. O cara o interrompeu:
- Comeu?
- Nã..., eu...
Levou um tabefe nas costas:
- Ora, meu querido, que bobeada, todo mundo come.
Ouviu a risada satânica, odiou-se. Sentiu-se o último dos focas.
O general e a alemãzinha
Enfim o assessor apareceu na sala de espera e alegrou os seis repórteres que estavam ali desde cedo: o general ia, sim, falar à imprensa, mas, por favor, tivessem um pouco mais de paciência, questão de dez-quinze minutos no máximo, só o tempo pro general despachar uns papeis importantes.
Quinze minutos a mais, não fazia diferença, na troça os repórteres ensaiaram aplausos. O assessor se retirou, apareceu o moço do cafezinho. Os da imprensa se serviram e, aliviados, mudaram de papo, os problemas do governo, em pauta enquanto esperavam o assessor, deram lugar a futebol, cinema e, adivinhem, mulher. Registre-se o fato raríssimo: eram seis rapazes, nenhuma menina para inibi-los.
E no capítulo mulher, o relato mais animado coube a um repórter de São Paulo, dois dias antes ele percorrera um bom pedaço da Transamazônica, obra monumental do regime militar, ele e outros jornalistas convidados, entre os quais uma catarinense radicada no Rio, meus amigos, que fêmea, alemãzinha, vocês não fazem ideia, um banquete, e não é que a gracinha colou em mim, eu, o feioso do grupo, e ela colou em mim, e eu nela, claro, nos tornamos inseparáveis, pra inveja dos outros machos, quando chegou a noite nós dois...
Aí o ouvinte mais atento ao relato, repórter de um jornal carioca, cortou o colega paulista:
- Comeu?
- Não, mano, não comi, sabe que ela...
- Puxa, cara, que susto, ela é minha mulher.
- Voc..., eu...
O general entrou na sala, a paz brilhou no céu da pátria.
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No avião
É de manhã e de repente você, que há anos não adoece, percebe que algo não vai bem. Como, com o correr do dia, os sinais de desequilíbrio orgânico se intensificam, você entra em contato com o médico e marca consulta ainda para aquela tarde. Preocupado, chega ao consultório antes da hora combinada. O médico o atende com algum atraso e, após minucioso exame, informa, o quadro não é tão grave, mas foi ótimo você ter me procurado logo, se tivesse deixado para depois, as coisas poderiam complicar.
Sob controle, você volta para casa e, obediente ao médico, inicia um período de repouso. E assim, na chatice do nada fazer, embora já sinta alguma melhora, você não deixa de pensar na fragilidade humana, na precariedade da vida. Pensamento idêntico ao que ocorre a todos que estão a bordo de um avião, mesmo aos que se gabam de não ter medo de voar: tudo ótimo, mas nada impede que daqui a dois segundos a gente se espatife lá embaixo.