Com o pai e a mãe, eu estava em Campo Grande , principal cidade de Mato Grosso, bem mais movimentada que a capital, Cuiabá (como vocês veem, antes, bem antes, da criação de Mato Grosso do Sul). Certa noite fomos ao cinema, não para assistir a algum filme, mas para ouvir um deputado carioca que vinha percorrendo o Brasil em campanha contra a corrupção do governo federal.
Apresentado à platéia, o deputado levantou-se e, as lentes grossas refletindo a luz da sala, soltou a voz grave: “Vou lhes falar de um personagem que tem crista de galo, rabo de galo, porte de galo, canta de galo, porém não é galo.” Daí em diante, arrasou. Nome do deputado: Carlos Lacerda. Nome do falso galo: Getúlio Vargas, presidente da República.
De volta a Curitiba, onde morávamos, todas as noites o pai ligava o rádio. Da Rádio Globo, Lacerda disparava sua metralhadora de mil e uma balas e eu, na leveza dos meus 10 anos, começava a perceber que tinha nascido num país difícil. A situação piorou quando Lacerda e o major da Aeronáutica Rubens Vaz foram atacados a tiros, o atentado da Rua Toneleros.
Vaz morreu, Lacerda, ferido no pé, redobrou os ataques. Os adultos em meu redor só falavam em mar de lama, Gregório Fortunato, República do Galeão. Até que no dia 24 de agosto – 57 anos atrás – calaram-se atônitos. O presidente Getúlio Vargas se matou com um tiro no coração, anunciava o noticiário em edição extraordinária. O pai, militar antigetulista, não segurou o choro. Suas lágrimas marcaram meu primeiro espanto político.
Quase 10 anos mais tarde, em abril de 64, dias após os militares mergulharem o país nas trevas, eu e alguns colegas da Faculdade Nacional de Filosofia paramos diante do busto de Getúlio na Cinelândia e, sem pressa, lemos a carta-testamento. Desafio ingênuo de jovens quase imberbes. E, mesmo agindo de coração, eu já desconfiava que, por ter sido ditador, o presidente suicida não merecia minha admiração. Como não merece qualquer outro ditador, de qualquer ideologia.
***
Em 1961, sete anos e um dia depois do suicídio de Getúlio Vargas, estava eu na cadeira do barbeiro aparando minha (acreditem) vasta cabeleira e ouvindo no rádio o Rancho das Flores (Jesus, alegria dos homens, de Bach, com letra de Vinícius de Moraes – e agora aqui temos o bom crisantemo, seu nome cantemos...), de repente a música é interrompida e o locutor anuncia a renúncia do presidente Jânio Quadros.
Janista doente, embora, menor de idade, ainda não votasse, me recusei a aceitar o que ouvira. Impossível, mentira, conspiração. Saí do barbeiro enlouquecido, claro que o governo desmentiria em seguida a terrível notícia, coisa de jornalista safado, vendido.
O desmentido não veio. Jânio embarcou para Londres, e eu fiquei a remoer meu segundo espanto político. Logo entendi que tinha acreditado num irresponsável, um irresponsável que sonhara em ser ditador. E que, por isso, não merecia meu respeito. Como não o merece qualquer outro candidato a ditador, de qualquer ideologia.
***
Já maduro, vacinado contra figuras messiânicas, em 89 achei que Fernando Collor não se elegeria. Parecia tão mentiroso quanto Jânio, com algumas diferenças: elegante, de banho tomado, o cabelo no lugar, sem caspas. E sem a droga do álcool.
Errei feio. O povão se apaixonou pelo rapaz das Alagoas – como se apaixonara por Getúlio e Jânio – e o pôs lá em cima. De novo a política me espantava.
Felizmente, o rapaz acabou desmascarado. Farsante, ele merece minha condenação perpétua. Como qualquer outro farsante, a serviço de qualquer ideologia.
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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)
Vinte anos
Corpo corpo corpo.
Completa,
a juventude dispensa
todo eufemismo.
(março/87)
Lembranças
A lembrança que
minha mãe tem
da minha infância
pouco tem a ver
com a lembrança
que eu tenho
da minha infância.
(janeiro/92)
O fim
Acabou, murmurou o
médico ao me comunicar a
morte do pai.
Acabou, berrou o marido
de minha namorada ao
me avisar que ela
não me veria mais.
Com que voz direi Acabou
ao sentir que morri?
(abril/09)
Você tem razão. Vivemos juntos, moramos juntos mas as lembranças daqueles momentos nunca são as mesmas. Interessante isso. Acredito que a importância do momento faça a diferença pra um e pra outro.
ResponderExcluirAgora, me explica. Que marido é esse que grita com o namorado da sua mulher ? Estranhíssimo.
Você não vai ouvir a sua voz quando morrer. Vai só acabar.
Teresa, com relação à última linha do teu comentário, eu usei uma licença poética. Agora, quanto ao trecho "que marido é esse que grita com o namorado da sua mulher", me permita a observação de velho redator: com o "sua" você passa a se referir à "minha" mulher, ou seja, à mulher do autor do Prosema, e não é esse o caso, eu falo do marido da mulher que o narrador do Prosema namora. Sacou? Você teria de dizer "que grita com o namorado da mulher", ou seja, a mulher é mulher de quem grita, e ela namora o narrador do Prosema.
ResponderExcluirSe eu não consegui explicar, desculpe, ainda bem que não sou professor, eu seria um péssimo professor.
De todo modo, fico muito contente em ter você como primeira comentarista da postagem de hoje.
Meu pai tinha um irmão meu tio que foi da segurança do Getúlio e ele contava que o Getúlio jantava e ia fazer a digestão fumando um charuto e passeando nos arredores do palácio no Rio e gostava de ir sozinho sem segurança. Será que é verdade, Marco?
ResponderExcluirBeijo do Esdras e da Carla.
que maravilha ! uma bela aula em pleno sábado chuvoso !
ResponderExcluirEntendi perfeitamente o que vc quis dizer qto ao grito do marido da SUA namorada. Entendi porque sei da história contada por vc mesmo. Ou esqueceu ?
Qto a minha última linha, senhor redator, eu tbém usei uma licença não tão poética qto a sua mas acho que me fiz entender.
desconfio que o seu dia não foi dos melhores...
Dois comentários exatamente na mesma hora. Isso é inédito no BP, vale o registro.
ResponderExcluirEsdras, eu já ouvi história parecida. Deve ser verdade, nem que seja verdade parcial, você sabe que as histórias vão ganhando enfeites à medida que são recontadas. Eu também já ouvi que o Getúlio dava umas namoradas numa gruta que existe no jardim do Palácio do Catete. Verdade ou fantasia, como sabermos?
Teresinha, minha querida e velha (no bom sentido) amiga. Ao contrário do que você imagina, tive um sábado pra lá de bom, leve e prazeroso. Até fumei uma cigarrilha, o que eu não fazia há muito tempo.
Engraçado é que eu tbém tive uma tarde muito boa e relaxante. Quem sabe o início da sua noite não tenha sido dos melhores ?
ResponderExcluirNão foi mesmo dos melhores, fui ver o filme "A árvore da vida", que me pareceu muito grandiloquente. Definitivamente, o cinema americano não consegue alcançar a classe e a arte do cinema europeu (francês, italiano, inglês).
ResponderExcluirTalvez por causa do anoitecer meio frustrante, eu tenha sido um pouco azedo na minha resposta ao teu comentário sobre a postagem de hoje. Desculpe, você é (que o grande Igor não nos leia) quem mais faz comentário aqui e por isso (também por isso) merece todo meu carinho.
Beijo de paz.
Teresa, uma pequena correção, que como velho redator tenho de fazer: lá em cima errei ao dizer que você foi "a primeira comentarista da postagem de hoje". Você foi "o primeiro comentarista..."
ResponderExcluirMagaysíssimo, quem sou eu pra disputar com a Teresíssima, não fiquei triste por você ter colocado ela em primeiro lugar, ela é mesmo a nossa campeã, eu sou apenas um esforçado colaborador, você sabe que eu gosto.
ResponderExcluirQue história é essa "o marido de minha namorada", quer dizer que você era o Ricardão?
Abraço dominical do I. A. S. M.
Igor, não seja modesto, você é um GRANDE colaborador, se a Teresa é a campeã, você é o vice.
ResponderExcluirQuanto ao "marido de minha namorada", deixa pra lá.
O Marido da Minha Namorada bem poderia ser o título de um filme. Vc, MA, cheio de culpa por todos os lados, poderia responder ao meu querido Igor e esclarecer essa historinha.
ResponderExcluirVou, mais uma vez, discordar de vc. O cinema americano sempre produziu grandes filmes . Lógico que há exceções como tbém elas existem no europeu. Quem manda ir ao cinema só por ir ? Às vezes é melhor ficar em casa, curtir um papo, fumar uma cigarrilha acompanhada de um uisque.
Igor, nosso editor é um poço de mistérios ! A gente se enfrenta mas a gente se ama.
ResponderExcluirEu, cheio de culpa por todos os lados? Ora, Teresa, como diz o outro, faz-me rir.
ResponderExcluirQuando diminuí o cinema americano, quis me referir a filmes-cabeça. Esqueci de explicar. Quanto a outro tipo de filmes (ação etc), eles são imbatíveis. Aí, é verdade, o cinema é uma arte americana. Mas quanto ao cinema-cabeça, os americanos pisam na bola.
Então fica resolvido assim. Qdo quiser ver um filme "cabeça" corre prum argentino, um alemão, um francês mas quando quiser grandes produções veja um bom filme americano. Tudo em seu momento. Esquecemos dos atores e atrizes. Uma misturada de gente maravilhosa de todas as nacionalidades. Concorda ?
ResponderExcluirVocês já me falaram do valor da política, que não se vive sem ela e eu entendi, mas mesmo assim não gosto quando o assunto é político ou gosto menos. Sinto muito.
ResponderExcluirConcordo, Teresa, há atrizes e atores em todos os cantos.
ResponderExcluirQue é isso, Carol, você não é obrigada a forçar a barra na tentativa de gostar do que não gosta. Continue sendo você e pronto. Te envio um beijo especial.
Nova correção, Teresa, hoje estou comendo mosca. Eu quis dizer "atrizes e atores ótimos..."
ResponderExcluireu sei, eu entendi. Leio bem mais além.
ResponderExcluirGostei do Prosema "Vine anos". Perfeito.
ResponderExcluirVisitante.
Suas idéias têm sempre um corte perfeito. "O fim" pontua bem "o final e a promessa" de um novo texto: o pai sai, o filho chega, uma mulher vai outra surge, o Poeta morre mas a sua voz não cala.
ResponderExcluirBeijo
Em tempo: Só você para falar tão poeticamente de uma namorada sua e o marido dela. Elegância de alma é isso: para poucos.
Magaysíssimo, no comentário de ontem esqueci de dizer que tenho a honra de não ter votado no Collor, não fui na conversa dele.
ResponderExcluirIgor Matoni deseja boa semana aos amigos do BP.
Oi Carol, o assunto não é só política. É a nossa história do Brasil que, quem viveu, não vai ler em livro algum.
ResponderExcluirHoje eu soube que "A árvore da vida", que eu achei ruim (ontem, pior que anteontem; hoje, pior que ontem), ganhou a Palma de Ouro em Cannes.Difícil de acreditar, há algo errado...
ResponderExcluirIsso já aconteceu comigo. Filmes premiados, aplaudidos, que eu detestei. A conclusão é que vai muito do momento e da companhia que está com vc.
ResponderExcluirHá filmes que nem as boas companhias conseguem salvar. Realmente Sr."Blogueiro",só pode ser muita coisa errada...
ResponderExcluirParabéns pelo bom gosto.
Com uma boa companhia você vê até Branca de Neve em chinês e acha lindo !
ResponderExcluirOi Teresa,
ResponderExcluirAté que você não deixa de ter razão. No caso em questão, há uma grande diferença entre as "árvores" dos dois filmes e cá entre nós,eu prefiro as do Branca de Neve mesmo sendo em chinês.
Grande abraço.
Uma amiga me recapitulou a história, o grande favorito para a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2011 era “Melancolia”, do dinamarquês Lars Von Trier. Este, porém, disse aos jornalistas que entendia algumas atitudes de Hitler, lembram-se?, e, claro, se desgraçou. A direção do festival declarou-o persona non grata e o seu filme perdeu todas as possibilidades de vitória. Sobrou então para “A árvore da vida”, aquela coisa horrenda do americano Terrence Malick.
ResponderExcluirAgora, pretendo ver “Melancolia”, o que não estava nos meus planos.
Se não está nos seus planos, não veja. Tem que haver um critério para ver um filme. Bem, depois conta.
ResponderExcluirOi Celia, eu realmente não vi A árvore da Vida. Me informei antes com quem tem o mesmo gosto que eu e resolvi passar longe do cinema. Tou pra ver Le Bonheur (As duas Faces da Felicidade). Ver não, rever o filme que marcou minha vida. Recomendo a vc e ao editor Agora, tem uma coisa. Naquele momento ele foi o máximo mas pode ser que hoje não tenha o mesmo efeito.
Um abraço !
Teresa,
ResponderExcluirEu já vi o filme. Lindo! (Ou pelo menos era...)Espero que lhe traga boas recordações.
Só digo uma coisa: LULA-LÁ!!!!!!
ResponderExcluirBeijoca, estou com saudade
PS: já ouviu o disco do Chico que eu te dei?
"a vida é bela
é garrincha
é cartola
e é mandela"
Ahhh! O "narrador" do prosema, como você se referiu para explicar pra Teresa, é o eu-lírico!
ResponderExcluir"Narrador" é pra textos em prosas... gostou da correção da redatora? hahahaha
Gostei, Antonia, gosto muito quando você dá uma pausa em seus mil e um afazeres e posta um comentário aqui.
ResponderExcluirGostei e, pai chato e redator atento, faço uma correção na correção da redatora: "textos em prosa", não em "prosas", certo? Rarrarrá.
Beijo do Ancião.
Acertos de ambos os lados mas uma sintonia gostosa entre pai e filha. Faço tbém minha correção. Nem tão ancião assim ...
ResponderExcluirCelia, será mesmo que vale a pena rever ou deixar como lembrança de outros tempos ?
ResponderExcluirTeresa,
ResponderExcluirAcho que sempre vale a pena, ainda que seja somente para se ter a certeza do quanto é bom estar viva. Afinal,se viver é colecionar emoções,porque não revê-las?
Boa sorte!
Magaysíssimo, cinema não é o meu forte, nem literatura. As vezes vejo um filminho na tv ou folheio um livro na banca. Gosto de teatro, você sabe.
ResponderExcluirEsse comentario é pra dizer que continuo por perto, mesmo com a mulherada tomando conta do BP.
Abraço do I. A. S. M.
Igor, a mulherada está tomando conta de tudo, não só do BP, mas teu lugar aqui é cativo, fique tranquilo.
ResponderExcluirIgor, sumido ! senti falta suia. Não se acanhe conosco. Viemos mesmo pra tomar conta de tudo mas vcs são indispensáveis. Fazem a vida ficar bem melhor !
ResponderExcluirTeresíssima queridíssima, depois dessa sua declaração de amor vou dormir feito um justo.
ResponderExcluirBoa noite, Igor Matoni.
Sou assim mesmo. Digo o que sinto. Minha declaração de amor é pra vocês, homens, pedaços de mau caminho, indispensáveis ao nosso bem estar A vida seria chatérrima sem vocês.
ResponderExcluirPode dormir com os anjos.
O prosema é um gênero textual inédito. Como poderíamos chamar a voz dessa nova modalidade de expressão poética?
ResponderExcluirComo eu faço questão de enfatizar, os Prosemas não são poesia, são apenas exercício de escrita, meio que uma brincadeira sem maiores pretensões. Como então chamar a sua voz? Aceito sugestões.
ResponderExcluirVc já disse. Brincadeira com palavras.
ResponderExcluirSem pretensões:"brincador lírico". Que tal?
ResponderExcluirPrefiro Mim Lírico, que tal? Ou nada, fica o dito pelo não dito.
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