Se não morreu, dona Emília há muito já passou dos oitenta. Por onde andará? Me lembro dela ao cair preso num engarrafamento bem em frente ao prédio em que ela morava, na Rua Marquês de Abrantes, Flamengo.
Foi meu primeiro endereço no Rio. Chegado de Curitiba, uma parente me levou a dona Emília.
- Você me paga 18 mil cruzeiros por mês – ela disse – e recebe quarto e banho, café da manhã, almoço e jantar, roupa lavada e passada, mais telefone. Mas o telefone não é pra papo com namorada ou amigo, é pra dar ou pegar recado. E não pode andar só de cueca fora do quarto.
Topei, avisei o pai que os 20 mil combinados de mesada eram pouco, eu precisava de 30 mil. Tudo certo, me inscrevi no vestibular de Jornalismo da Faculdade Nacional de Filosofia (a famosa FNFi da Universidade do Brasil (hoje, UFRJ) e comecei a desbravar o Rio de Janeiro.
Em pouco tempo, com meus olhos provincianos, percebi que o inusitado não estava apenas nas ruas, praças e praias da cidade. Habitava também o apartamento de dona Emília, num 11º andar.
Dona Emília dava aulas particulares para adultos que queriam se alfabetizar ou fazer o admissão ao ginásio – empregadas domésticas, na maioria – e vivia com um sujeito 13 anos mais novo que ela.
Sem ter onde cair duro e de uma ignorância imensa, o cara era tão ou mais reacionário que a mais reacionária elite da época, contra todas as reformas propostas pelo Governo João Goulart (voto ao analfabeto, reforma agrária etc). Costumávamos discutir. No dia 1º de abril de 1964, quando os militares mergulharam o Brasil nas trevas, ele me recebeu eufórico.
- Moscouzinho, vocês se ferraram. Agora é a nossa hora.
Achei que, sem demonstrar temor, devia procurar outro pouso. De noite, conversei sobre isso com Joãozinho, o sobrinho de dona Emília que morava conosco. Ele, ignorante como o tio postiço, também me achava meio comuna, mas, além de amigo, não estava nem aí para o que ocorria no país. O seu negócio eram as corridas na Gávea. Bancário encostado na Previdência por causa de uma úlcera, passava os dias colado ao rádio, ouvindo os programas de turfe e sonhando com uma aposta milionária que o livrasse definitivamente da falta de dinheiro. Às vezes pedia algum à tia.
- Pra quê – ela se exaltava -, pra meter no cu dos cavalos?
Ríamos do jeito desabrido de dona Emília e, aproveitando o momento de leveza, Joãozinho perguntava se eu não lhe arranjaria a grana. Eu dizia que não tinha, e quase sempre era verdade, os 12 mil cruzeiros que sobravam da mesada enviada pelo pai davam na medida para o ônibus, o cigarro (eu fumava), o cinema semanal e um ou dois livros por mês.
Certo dia, Joãozinho me induziu a uma aposta, não me lembro de quanto. De posse do programa dominical do Jóquei, eu diria o nome dos cavalos inscritos, do primeiro ao último pareio, na ordem que quisesse, e ele responderia com o nome do pai, da mãe e dos irmãos, próprios (mesmo pai e mesma mãe) ou não.
- Se eu errar os pais e os irmãos de uma cavalo que seja, perco o dinheiro.
Acertou de cabo a rabo e, feliz da vida, foi fazer sua fezinha.Voltou cabisbaixo. De novo se dera mal.
Naquela noite de 1º de abril em que o companheiro de dona Emília me chamou de Moscouzinho, Joãozinho concordou que eu devia me mudar.
- Sai antes que esse cara te apronte alguma. Ele é perigoso.
Exagero do Joãozinho. O cara era apenas um pobre coitado. Os perigosos de verdade eu conheceria mais tarde, sobretudo depois do AI5, em 68. Mesmo sem uma atividade política que me transformasse em perseguido do regime, andei esbarrando em figuras tenebrosas.
Mas isso é assunto para outra crônica. Por ora, no meio do engarrafamento na Marquês de Abrantes, fico na pergunta lá de cima: por onde andará dona Emília?
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Em Roma, o papa mandou fechar o mosteiro da Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, porque as freiras dançavam nas cerimônias litúrgicas. Em Dom Pedrito (RS), o Exército abriu inquérito para apurar o caso de seis soldados que dançavam ao som do Hino Nacional em versão funk (o vídeo, na internet, é ótimo). Como sempre, basta o corpo se libertar que o Poder entra de sola. O corpo é o grande inimigo.
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Dizem as investigações que a queda no Atlântico do avião da Air France, em 31 de maio de 2009, durou três minutos e meio. Para as 228 pessoas a bordo, uma eternidade.