Nove da noite, uma transversal da Tijuca, comecei a procurar vaga para estacionar. Não demoraríamos, coisa de minutos, em último caso deixaria o carro em fila dupla. Lá na frente, no meio da rua, apareceu um rapaz, me indicou uma vaga. Até aqui, comentei com Y., tem flanelinha, mas não vou dar mais que dois reais e fim de papo. Manobrei, desliguei o farol e o motor, acionei o segredo e desci. Y. já havia descido e caminhado para junto de uma vitrine.
Fechei a porta, contornei o carro. No instante em que pisei na calçada, o rapaz me chamou, tio, olha aqui, tio. Me virei, me vi diante de um revólver, a chave, tio, a chave se não aperto. Dois outros se aproximaram, ligeiro, tio, vou apertar. Olhei rápido para Y., às minhas costas, joguei o chaveiro, o assaltante o aparou no ar. Mandou um dos comparsas me revistar, vê se ele tem arma.
- Fique tranquilo – disse ao cara -, não ando armado.
- Legal.
- Posso ir?
- Não, tio – o do revólver gritou –, não se mexa, espere a gente se afastar.
De viés, vi Y. imóvel junto à vitrine, as mãos cruzadas no peito (para eles verem que eu também não tinha como reagir, ela me explicou mais tarde). Os três entraram no carro (e se decidem me levar?), o do revólver no banco de trás.
- Tem alarme? – perguntou.
Resolvi não bancar o esperto: - Não. Tem segredo.
- E como é?
- Destrava com a chave menor. No chão, embaixo do tapete, à direita.
O que estava ao volante não conseguiu abrir o segredo. Coitado, precisava de ajuda. Com o consentimento do líder, desalojei o motorista, pus o carro em condições de arrancar, Voltei à calçada.
- Valeu, tio, valeu mesmo.
O carro já em movimento (e se o cara atira agora?), o que estava ao lado do motorista retribuiu a gentileza.
- A gente vai resolver uma parada, ali pela meia-noite pode procurar a máquina.
- Onde, onde?
- Nos arredores da Saens Peña. Tchau, tio.
Enfim livres, Y. e eu nos abraçamos. Humilhados mas felizes por continuarmos vivos. Para amenizar a depressão, liberei o humor: tio, tio, que sobrinhos desnaturados! Rimos e fomos à delegacia. Feita a queixa, voltamos para casa e, a uma hora da manhã, revirei a área da Saens Peña à procura do carro. Perda de tempo, só eu mesmo para confiar em bandido simpático.
Quatro dias depois, porém, a grande surpresa, coincidência inacreditável: o carro estava inteiro numa ruazinha perto da Praça da Bandeira, em frente ao prédio – sério, não é invenção – em que mora uma tia minha.
Em meio à alegria provocada por tamanha sorte, tive de sofrer os trâmites burocráticos, ir algumas vezes à polícia até conseguir o chamado atestado de recuperação do veículo.
- O senhor deve carregar esse papel junto com o documento de propriedade – recomendou o policial que me atendeu. – Ainda bem que tudo terminou da melhor maneira.
- Ainda bem – concordei , quase comovido. – E muito obrigado.
Só eu mesmo para confiar em policial simpático. Meses mais tarde, ao providenciar o novo IPVA, soube que estava usando um carro roubado. Sim senhores, a recuperação não havia sido registrada no computador da polícia. Mais um banho de burocracia, a delicadeza disfarçando a raiva – por favor, seria possível?, quando então?
No dia em que finalmente o rolo acabou, jantei e fui visitar um amigo em Botafogo. Estava estacionando, ouvi uma voz adolescente, tio, tio... Gelei. Olhei à esquerda, um meninote fingia que me ajudava. Pode deixar, tio, eu tomo conta. Paga quanto quiser, aqui quem manda é o freguês.
Respirei aliviado, saí assobiando Cidade Maravilhosa.
@@@@@
O mesmo disco - Anos atrás, quando da aprovação da lei do divórcio, católicos e evangélicos anunciaram o fim iminente da família. Agora, com o STF assegurando o direito de união estável para os homossexuais, evangélicos e católicos gritam que a destruição da família não tarda. Quanta falta de imaginação! Haja paciência.
(Na verdade, em questões morais, mesmo os grupos religiosos mais avançados ficam, como diz um amigo meu, na retaguarda – na retaguarda da vanguarda).
Com toda sinceridade, Magay, eu não sei se gosto ou não do teu blog. Enquanto não chego a uma conclusão, vou lendo tuas postagens sabatinas (que tal, sabatinas?). E hoje tenho um motivo forte de identificação: é que também me meteram um revólver na cara e levaram meu carro. Levaram e eu não recuperei, ou seja, continuo sem motivo para assobiar "Cidade Maravilhosa".
ResponderExcluirAbraço da Ana Gam.
Você mora em que cidade, Ana? Onde você perdeu o carro?
ResponderExcluirOra, Magay, se eu não tenho motivo para assobiar "Cidade Maravilhosa", onde é que eu moro? Em Palmeira dos Índios?
ResponderExcluirMoro em Ipanema, conhece? E me levaram o carro no Leme.
Informações confidenciais de Ana Gam.
Apesar de me considerar de vanguarda acho estranha essa oficialização da união gay. Nada a ver com religião. Tento aceitar, vou ter que aceitar mas confesso que me incomoda um pouco. Era mais excitante tudo na surdina ! Escancarado assim ficou sem graça, sem o charme do proibido. Porque, sabemos que isso vem de priscas eras. vou ter que mudar meu porta-retrato da sala. Titio e titio.
ResponderExcluirPrezadíssimo Magay. As mulheres estão cada vez mais desaforadas. O que fazer?
ResponderExcluirIgor, quando fala em mulheres desaforadas, você se refere à Ana ou à Teresa (ih, olha você e a Teresa juntos de novo), ou às duas?
ResponderExcluirBem, o que fazer em relação às mulheres, desaforadas ou não? Amá-las, amigo, amá-las.
Teresa, então você, mesmo religião à parte, também está na retaguarda da vanguarda? Quem diria...
Vanguarda é dizer assim, de repente, que acha o máximo essa abertura. Eu sou assim meio desconfiada. Não sou hipócrita. Acho anti-natural essa oficialização. O que fazer ? daqui a alguns anos a minha linha de pensamento será ridícula e todos viveremos em paz. Mas, no momento estou na retaguarda mas aberta ao diálogo. Também não sou radical xiita .
ResponderExcluirRETAGUARDA DA VANGUARDA SIM ! MAS EU CHEGO LÁ !
ResponderExcluirIsso, Teresa. Arriba!
ResponderExcluir