Botafogo, a enseada e o casario, em 1919 |
Caminho dois quarteirões e meio na Rua Voluntários da Pátria, à procura de um endereço, me lembro de João do Rio. Em 1922, ele escreveu o seguinte: Tornou-se de nossos dirigentes e magnatas uma vaidade singular: a vaidade de Botafogo e adjacências. O resto do Rio não existe, mas paga imposto. O Rio é Botafogo, o resto é a cidade indígena, a cidade negra.
O que João do Rio escreveria se visse Botafogo cheio de edifícios de mau gosto, escritórios e clínicas, as ruas entulhadas de caminhões, ônibus e carros – estes, em frente aos colégios, em filas duplas e até triplas? Talvez nem conseguisse escrever, bloqueado pelo caos botafoguense se declararia ex-cronista e, quebrando a pena, apelaria para o velho lugar-comum: indescritível, ponto final.
Saio de Botafogo rumo a Laranjeiras, troco João do Rio por Machado de Assis. Numa de suas mais deliciosas crônicas, o Bruxo ecoa a notícia do dia: vão calçar a Rua das Laranjeiras. Alarmado, ele pede o arquivamento do projeto. E explica por quê: fora a vantagem de, em dias de chuva, se poder atravessar a rua sem enlamear os sapatos, a novidade teria consequências funestas, todas sob o disfarce do progresso.
O que Machado escreveria se visse o que restou de sua Laranjeiras, de seu Cosme Velho? Acho que não se daria ao trabalho de compor uma crônica. Cansado, piscaria o olho e resmungaria: eu não disse?
De Laranjeiras, já sem a companhia do Bruxo, que preferiu não atravessar o Rebouças, vou à Tijuca pegar um amigo na Rua dos Araújos. É uma rua pequena, entre a General Roca e a Conde de Bonfim, mas de trânsito difícil. Sem saída, por segundos vivo a alucinação de que me enganei e estou de novo em Botafogo. O amigo ri quando lhe falo dessa sensação e conta que, antigamente, a Rua dos Araújos tinha mão dupla e linha de bonde. Palavra de honra, ele diz ante minha cara de incredulidade.
Da Tijuca descemos para o Centro, aonde há muito eu não ia. Aí, aleluia, encontro boas surpresas. Várias ruas e pontos tradicionais foram remodelados e tornaram-se aconchegantes. O amigo, admirador entusiasmado do Rio de anteontem, informa que há em estudo outras ideias com o objetivo de humanizar a região.
Pois que essas ideias se concretizem. Se isso realmente acontecer, voltarei a dar minhas escapadelas por aqui, a flanar (verbozinho simpático, este!) como na época de faculdade. A FNFi ficava no Castelo, junto à Avenida Beira-Mar. Depois das aulas, eu e dois colegas saíamos a bater perna. Evitávamos a Avenida Rio Branco, insuportável, buscávamos ruelas e travessas, caminhos apaixonantes. Não raro, cruzávamos com Manuel Bandeira, morador do Centro. Um de nós declamava algum verso do velho poeta, ele sorria e seguia quieto.
Outras vezes, cada um com sua namorada – avec, se dizia então – íamos para trás do Museu de Arte Moderna ou do Monumento aos Pracinhas. Sentados à sombra, acompanhando o sol, falávamos sem parar – nós endireitaríamos o mundo; depois, o sol posto, cansados de tanta conversa, namorávamos. A violência e o medo pertenciam ao futuro – o Aterro do Flamengo, ainda com muitas áreas sem o verde de Burle Marx, era lugar seguro; e 64, apenas o ano que se aproximava.
Felizes e inocentes, namorávamos, namorávamos, namorávamos.
Bons tempos, bons tempos, bons tempos.
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Bobagens - Jantar de aniversário na família, sento-me entre dois primos que não vejo há anos. Não demoramos a engrenar conversa e logo percebo que eles acham que eu, como jornalista, estou a par de tudo, da intimidade da presidente da República aos planos secretos da Nasa para levar o homem a Marte. Não lhes estimulo a fantasia, ponho-me mais como ouvinte. Então, em menos de dez minutos, ouço duas mentiras e quatro piadas infames. Quanta bobagem vou ouvir até a sobremesa?
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FHC - Independentemente de posição política, deve-se ler a entrevista de Fernando Henrique Cardoso, que está completando 80 anos, ao Globo de hoje. Eu não sou PSDB ou fernandista, mas recomendo com veemência.
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Mulher ao volante - Finalmente aconteceu: em mais um capítulo das revoltas nos países árabes, mulheres da Arábia Saudita desobedeceram à proibição de dirigir. Aqui cabe, como dizia Nelson Rodrigues, proclamarmos o óbvio: se elas saíram às ruas dirigindo é porque sabem dirigir, e, se sabem dirigir, é porque aprenderam a dirigir. Ou seja: mesmo na ditadura mais fechada, é impossível sufocar completamente o indivíduo. Viva o desejo de liberdade.
O que João do Rio escreveria?
ResponderExcluirContinuaria flanando, observando e amando o mundo encantador das ruas:
"Há suor humano na argamassa do seu calçamento."
"Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos." (A rua)
Quanto ao Bruxo
Subiria, todos os domingos, o Cerro Corá para comer feijoada, tomar caipirinha e ouvir um sambinha com Magay.
Homenagem
As crônicas de hoje são tristes.
Bobagem
O aniversário de FHC e tudo o que ele diz.
Mulher ao volante
Só algumas.
Anônimo que é anônimo
Gay, pelo segundo sábado seguido você menciona o Manuel Bandeira. Dos brasileiros ele é o teu poeta preferido? Eu adoro.
ResponderExcluirBeijo.
Você tem bom gosto literário.
ResponderExcluirTRUCIDARAM O RIO
Prendei o rio
Maltratai o rio
Trucidai o rio
A água não morre
A água que é feita
de gotas inermes
Que um dia serão
Maiores que o rio
Grandes como o oceano
Fortes como os gelos
Os gelos polares
Que tudo arrebentam.
(Manuel Bandeira)
Neste sábado lindo de finzinho de outono, voltei anos atrás e passeei com vc pelas ruas do Cosme Velho lembrando de uma história que meu avô contava. Ele morou ali pelas redondezas do Largo do Boticário (que abandono !) onde nasceu o Rio Carioca e desembocava na Pça José de Alencar. Toda manhã ele via passar Machado de Assis, num terno de linho impecavelmente branco, chapéu e bengala que ele rodopiava pra fazer charme. A casa do meu avô não existe mais e o pobre Rio Carioca deve estar por aí solapado debaixo do cimento.
ResponderExcluirCosme, quem não gosta de Manuel Bandeira? Acho difícil encontrar alguém. Mas, dos nossos poetas contemporâneos, não é o meu preferido. Em primeiro lugar vêm Drummond e João Cabral, às vezes este um pouco na frente daquele. E também gosto muito do Vinícius, que tem coisas lindas.
ResponderExcluirVoltando ao Bandeira, assim como no futebol o América é o segundo time de quase todo mundo, na poesia ele é querido pela grande maioria dos leitores.
Sei que vão cair em cima mas não acho a menor graça no Drummond. É aquela coisa que se é obrigado a gostar. Já o Vinicius e por que não o poeta Chico Buarque ?
ResponderExcluirQuem te disse que o América é o 2o time de quase todo mundo ? Esqueceu do Bangu.
Quero meter minha colher. E o Ferreira Gullar? Não leio poesia todo dia mas o que eu li dele eu gostei.
ResponderExcluirQue é isso, Teresa, o América é muito mais querido que o Bangu.
ResponderExcluirLuzia: eu gosto do Ferreira Gullar, mas -continuando com as metáforas futebolísticas, no estilo Lula - ele joga na seleção sem porém ser titular, fica no banco de reservas para entrar no segundo tempo. Agora, o "Poema Sujo" é maravilhoso.
Conheço quase nada do Ferreira Gullar, mas depois do comentário da Luzia eu e Leandro descobrimos na internert um poema lindo dele. Vejam:
ResponderExcluirCoito
Todos os movimentos
do amor
são noturnos
mesmo quando praticados à luz do dia
Vem de ti o sinal
no cheiro ou no tato
que faz acordar o bicho
em seu fosso
na treva, lento,
se desenrola
e desliza
em direção a teu sorriso
Hipnotiza-te
com seu guizo
envolve-te
em seus aneis
corredios
beija-te
a boca em flor
e por baixo
com seu esporão
te fende te fode
e se fundem
no gozo
depois
desenfia-se de ti
a teu lado
na cama
recupero minha forma usual.
Não é lindo?
Magaysíssimo. Poesia não é minha praia, mesmo assim dou meu alô, de passagem pra não atrapalhar, se fosse teatro eu poderia falar, já disse que sou plateia.
ResponderExcluirMas mesmo não sendo minha praia, gostei muito desse poema que o Cosme transcreveu.
Boa noite do Igor Matoni.
Cosme, obrigado por passar o poema do Gullar, muito bonito. Quando puder leia o poema sujo que o Magay diz que é maravilhoso. Eu tb acho.
ResponderExcluirLindo, Cosme. Todas as formas de amor valem a pena. O outro, sugerido pelo MA, é muito bonito tbém. A poesia é uma das formas mais difíceis de se escrever, acho eu. E quando vai assim na mosca, bate fundo.
ResponderExcluirAssim que encontrar o Poema Sujo eu leio. Leandro e eu já estamos procurando.
ResponderExcluirVejam a força da poesia. Desde ontem, em vez de comentários belicosos, trocamos informações amigáveis.
Beijo a todos.
Não resisti e ai vai um pouco da Cecilia Meireles nesse tempo de doçura total.
ResponderExcluirHá pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.
Cecília Meireles
Eu não quero ficar fora desse "tempo de doçura total" (obrigado, Teresa). Por isso passo para vocês o Soneto da Fidelidade, de Vinícius de Moraes.
ResponderExcluirAna Gam, terminando o domingo com emoção.
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Pra vc se incorporar a nós, Igor, recomendo a peça A CRÕNICA DA CASA ASSASSINADA, do escritor Lucio Cardoso. Vale ler o livro antes.
ResponderExcluirE para esquecer o amargochicória que todo final de domingo tem
ResponderExcluirBundamel Bundalis Bundacor Bundamor
Bundamel Bundalis Bundacor Bundamor
bundalei bundalor bundanil bundapão
bunda de mil versões, pluribunda unibunda
bunda em flor, bunda em al
bunda lunar e sol
bundarrabil
Bunda maga e plural, bunda além do irreal
arquibunda selada em pauta de hermetismo
opalescente bun
incandescente bun
meigo favo escondido em tufos tenebrosos
a que não chega o enxofre da lascívia
e onde
a global palidez de zonas hiperbóreas
concentra a música incessante
do girabundo cósmico.
Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
bunda mutante/renovante
que ao número acrescenta uma nova harmonia.
Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
o arco de triunfo, a ponte de suspiros
a torre de suicídio, a morte do Arpoador
bunditálix, bundífoda
bundamor bundamor bundamor bundamor.
Carlos Drummond de Andrade
Beijo,
Chicória
bundamor bundamor bundamor bundamor, que maravilha, eu já tinha ouvido falar da poesia erótica do Drummond mas nunca li. Agora vou ler muito, sem esquecer que tenho de ler o poema sujo do Gullar.
ResponderExcluirValeu Teresa, a peça eu conheço, o livro não. Pra ser sincero, não leio muito.
ResponderExcluirSobre essa poesia da bunda, não tenho nada a dizer por enquanto. Não é muita bunda? Vou ler mais.
Abraço do Igor Matoni.
Conheci o Lucio Cardoso. Introspectivo, atormentado. Se não me engano esse livro virou filme também. Ainda não vi a peça mas sei que ela está aqui no Rio.
ResponderExcluirQuanto a esse poema do Drummond ... sei lá, já li melhores.
Gente, me perdoem mas hoje tou de coração mole e com saudade do meu amor. Só mais essa.
ResponderExcluirBasta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
Cecília Meireles
Boa noite, pessoal. E salve a poesia.
ResponderExcluirJá começamos a nos sujar com o poema do Ferreira Gullar. Leandro está amando, eu estou adorando. Bom demais.
ResponderExcluirBeijos poéticos.
Pelo visto vamos entrar a semana soltando o nosso lado poético.
ResponderExcluirE não é o nosso melhor lado?
ResponderExcluirDepende, nos momentos de luta pela vida é bom esconder o nosso lado poético porque ele atrapalha, infelizmentew. E esses momentos são os mais comuns.
ResponderExcluirO entusiasmo do Cosme pelo Poema Sujo está me contagiando. Eu ainda não li, vou ler.
Ana Gam, amanhecendo.
FHC é um estadista, MA. A história vai comprovar isso mais tarde. A entrevista dele é de um homem lúcido, coerente com suas idéias. Não sou PSDB nem filiada a partido algum mas sei apreciar os homens que têm algo pra dizer e que, com o poder na mão, fizeram alguma coisa pelo nosso país.
ResponderExcluirQuando eu disse que poesia não é minha praia, estava falando da poesia de livro, poesia escrita, ficou claro isso? É importante ficar claro porque momento poético nem sempre tem a ver com esse tipo de poesia, e como todo mundo eu curto os momentos poéticos.
ResponderExcluirTeresa, será que o FHC é mesmo um estadista? Tenho minhas dúvidas.
Abraço do Igor Matoni.
Terminamos de ler o Poema Sujo ali pelas oito e meia e então grávidos de poesia começamos um amor com tanto prazer que durou quase uma hora. Agora vamos fumar um cigarro caseiro e depois dormir abraçados, obrigado Ferreira Gullar. Nos próximos dias vamos te reler.
ResponderExcluirBeijos meus e de Leandro.
Estava ensaiando uma resposta pro Igor, um misto de estadista com poesia, quando me deparo com esse tratado de amor do Cosme ! Tudo que se disser nessa noite fica pequeno frente ao que li acima. Posia é isso, Igor.
ResponderExcluirCosme, se eu ficasse assim ~tão inspirada lendo FG eu juro que não largava o livro, varava a noite embalada pelo cigarrinho caseiro !
ResponderExcluirDiferentaço esse Blog!!! Valeu o espaço que estamos ganhando!!!
ResponderExcluirAbc,
Victor
bem maneiro também! Todo mundo conversa por aqui e desse jeito é legal. Cosme, muito prazer e parabéns pela sua alegria de ser homosexual bem resolvido.
ResponderExcluirMarco, vc é do nosso metiê? É porque sou maquiador e pretendo promover um desfile aqui no meu bairro. Gostaria muito que viesse. Tenho vários amigos blogueiros que trabalham em rádios e revistas.
Abc,
Victor
Victor, seja bem-vindo.
ResponderExcluirQuando você diz "... o espaço que estamos ganhando", você se refere a quem?
Outra pergunta: qual é o teu bairro e a tua cidade?
Não, não sou do teu metiê.
Abraço.
Boa noite, Marco
ResponderExcluirObrigado pelas boas vindas!!! O espaço que me refiro é aqui nesse Blog. Cosme faz parte do meu grupo, é um professor pelo que já pude constatar e vive um bom relacionamento com seu parceiro. As pessoas respeitaram sua escolha e ninguém o excluiu por ser homossexual.
Moro no Rocha, fica próximo de Triagem e do Riachuelo. Vc conhece? Tenho um salão de beleza junto com minha irmã, estamos montando uma outra lojinha de produtos para cabeleireiros. A inauguração será na primeira quinzena de julho. Vamos fazer um desfile e um churrascão. Gostaria que vc participasse.
Abc,
Victor
Esse blog está ganhando terreno e conquistando novas amizades ! Parabéns !
ResponderExcluirVictor, me mande o convite para a inauguração da lojinha, com endereço, hora etc. Se puder, apareço.
ResponderExcluirAbraço.