sábado, 30 de abril de 2011

Será que já estive em Paris?

       Um 1º de Maio perfeito, no céu sol de primavera, na rua o povo flanando. Instruído pelo funcionário do balcão de informações do aeroporto, fiz baldeação em Chatêlet e, agora na calçada da estação Odeon, mala e maleta nas mãos, eu não sabia se o Hotel de La Faculté, Rue Racine nº 5, ficava para a esquerda ou para a direita. No meu francês paupérrimo, perguntei a um rapaz alourado que direção tomar, ele não sabia. Me socorreu uma jovem oriental, creio que vietnamita, de francês pior que o meu: a Rue Racine era para a direita.
Na portaria do hotel, vagabundíssimo e baratíssimo, encontrei um sujeito moreno. Na minha terceira tentativa de formar uma frase, me perguntou em português de que cidade eu era, brasileiro ele também, se não me engano, de Santos. Deixei a bagagem no quarto, desci, me instalei no Café du Cluny, esquina de Saint Michel com Saint Germain, e, em êxtase, pedi um branco seco. Eram oito e tanto da noite, e o sol insistia. Comigo mesmo, brindei ao socialismo de François Mitterrand, que estava no início do seu primeiro mandato.
Dia seguinte levantei cedo, tomei café e procurei o Sena. Na cabeceira da ponte próxima à Notre Dame, abri o mapa da cidade, para onde ir?, uma senhora impecavelmente vestida se aproximou, me cumprimentou, perguntou se eu desejava alguma informação. Respondi que não, merci bien, ela se foi. Me emocionei, na minha primeira manhã em Paris alguém oferecia ajuda. Atravessei a ponte e me vi em frente ao Hotel de Ville (a prefeitura) e ao Ministério da Justiça.
Junto ao portal do ministério havia uma seta, Sainte Chapelle. Sem saber do que se tratava, mas intuindo que valia a pena conferir, entrei, comprei um tíquete e descobri uma capela maravilhosa, de dois andares, construída nos anos 1400, o Brasil nem existia, e iluminada apenas pela luz natural que furava os vitrais.
Nos sete dias seguintes, um quarto da excursão europeia que as férias me permitam, percorri Paris de norte a sul, de leste a oeste, por cima e por baixo, o mapa do metrô no bolso, dando prioridade, claro, ao Quartier Latin, o bairro boêmio e, no Quartier, aos bares recomendados por amigos, o Lippe, o Deux Magots, o Café de Flore, onde Hemingway, Sartre e vários outros tinham se embebedado e discutido literatura e filosofia. E ainda sobrou tempo para alguns museus, entre eles o Jeu de Paume, que na época abrigava os impressionistas, e o Louvre, com a Gioconda e a Vênus de Milo. Em resumo, roteiro típico de neófito.
Depois dessa iniciação, nas outras estadas na cidade, procurei, sempre a partir da Sainte Chapelle, incursões menos turísticas. E, parafraseando o poeta Paulo Mendes  Campos que, embasbacado com a grandiosidade do À la recherhe du temps perdu, disse (cito de memória) “já li Proust não sei quantas vezes, mas será que li Proust?”, me pergunto: será que já estive em Paris?
É tomado por essa dúvida que sonho com a próxima ida (quando, quando?). Como nas anteriores, visitarei logo a Sainte Chapelle e, em seguida, passarei pela Rue Francisque Gay, perpendicular à Saint Michel, me perguntando se essa Francisque era parente do cônego Jean Pierre Gay, que no século 19, veio para o Brasil como missionário e, com a colaboração de uma índia paraguaia, teve dez filhos, um deles meu avô.
No vaivem de viajante sem obrigações, alheio aos cuidados a que normalmente me submeto, abusarei do bom vinho e da boa comida. E assim, gordo e indolente, mais marabá do que nunca (ao dicionário, ao dicionário), pensarei em, na volta, escrever uma crônica tão deslumbrada quanto esta.

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A arrumadeira do Hotel de La Faculté, Jaqueline, morava na banlieu (a periferia da cidade) e, graças ao metrô, chegava ao trabalho, no Centro, em meia hora. Privilegiada como os trabalhadores daqui, não é mesmo?

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Aos 99 anos, morreu Ernesto Sábato, um dos grandes escritores argentinos da atualidade e um símbolo da luta contra a ditadura dos assassinos fardados. O fim de semana começou triste.      


sábado, 23 de abril de 2011

Ressurreição

       Papai Noel existia, eu o tinha visto numa loja – a barba branca, o cajado, a roupa vermelha -, ele até perguntou meu nome. Mas a história do coelhinho que deixava os ovos de chocolate debaixo da cama das crianças obedientes era absurda.
Convencido de que me iludiam, desafiei os adultos de casa, não há coelhinho nenhum, quem aposta comigo? Apostamos dois cruzeiros, eu contra o resto da família. Audacioso, avisei que de sábado para domingo não dormiria, pronto para flagrar o mentiroso que entrasse macio no quarto, a cestinha de chocolate na mão.
Ninguém acreditava que eu varasse a noite acordado, mas o fato é que, por respeito à minha firmeza de criança, ou, sei lá, por medo da desmoralização, os adultos se renderam – pois bem, não há coelhinho.
Ah é, e os dois cruzeiros? Peguei a moeda, corri ao bar da esquina, comprei quatro caixinhas de chiclete de hortelã. A delícia quadruplicada. Me proibiam de mascar chiclete, estragava os dentes e colava no estômago, mas, naquele dia de glória, ninguém teve a coragem de me contrariar.
Anos mais tarde, no colégio marista, Papai Noel também rifado, me disseram que no domingo de Páscoa Jesus ressuscitara e ascendera aos céus. Este e outros ensinamentos desfiados nas aulas de religião – o mistério da Santíssima Trindade, Adão e Eva, a virgindade de Maria, o perigo do pecado (pecava-se por ações e por maus pensamentos), o Juízo Final – me transportavam para a já surrada história do coelhinho. Difícil crer.
Mas não crer também era difícil, quem não cresse, dizia o catecismo, conheceria o fogo ininterrupto do inferno. E sem direito a chiclete de hortelã, brincava com meus diabinhos.
Não dava para brincar o tempo todo, a ameaça do castigo eterno assustava. E se eu estivesse errado, eu que relutava em acreditar em Deus, uno ou trino, eu que quase só tinha maus pensamentos – incontroláveis, maravilhosos. Condenado para sempre? O medo provocava arrepios.
Até que um dia veio a luz: jamais terei certeza da existência ou não de Deus, negá-lo é tão pretensioso quanto afirmá-lo, de indubitável mesmo só a dúvida. Logo, a ordem é relaxar e viver da maneira mais digna possível.
Sem saber, me tornara agnóstico, encontrara minha fé, que às vezes, em momentos de preguiça ou megalomania, troco pela simplificação do ateísmo.
Havia entretanto outros deuses. No primeiro ano de faculdade, os olhos da primeira juventude escancarados para o mundo, um colega mais velho, hoje historiador citado, me garantiu que o comunismo era o estuário natural da humanidade. Ousei perguntar-lhe de onde vinha tanta segurança, ele fulminou: “Bolas, nenhum país que abandonou o capitalismo voltou atrás.”
Em 91, em Berlim, ao encontrar camelôs oferecendo pedaços de pedra ou cimento que teriam sido do Muro, e mais fardas e objetos de soldados soviéticos que partiram ou desertaram, pensei em comprar uma bota furada e enviá-la ao nosso historiador.
Ele certamente não entenderia, não nos víamos havia vinte e tantos anos. Aliás, acho que depois daquela nossa conversa, não voltamos a nos falar. Ele ficou com seu brilhante argumento, eu com a minha encabulada dúvida.
Encabulada mas utilíssima, graças a ela em nenhum instante da longuíssima noite militar derrapei naquele ufanismo mofado e perigoso. Perigoso e horripilante. 
Noite longuíssima, mas não interminável. Mal ou bem, a ditadura estrelada ruiu, bem ou mal remontamos à democracia. E é em nome da democracia, regime avesso a todo dogmatismo, que eu aproveito a Páscoa, festa de ressurreição, para reerguer o sagrado estandarte da dúvida. Com direito a chiclete de hortelã.

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Duas frases sábias, tiradas do baú.
De dom Pedro Casaldáliga, bispo que se notabilizou por combater a ditadura: “Fernando Henrique (então presidente da República) era melhor quando era ateu.”
De uma sem-teto de São Paulo: “Se tiver dinheiro, vou comer, não vou pagar aluguel.”

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E, para concluir, a frase bem-humorada de um empresário, ao comunicar aos amigos, em jantar recente, que estava abandonando de vez a cocaína: “Ou a carreira ou as carreiras.”




sábado, 16 de abril de 2011

Mulheres zangadas

       Desci do táxi na esquina, caminhei para o prédio em que morava. Em frente, um ajuntamento me deteve. Havia dois carros da polícia e, forçando passagem entre os curiosos, cinco PMs conduziam três mulheres e um homem.
Das janelas em volta desciam aplausos, vaias e assobios, de súbito abafados por um instrumento de sopro, de som grave, a reproduzir cômica sequência de compassos. A multidão vibrou, um dos fardados empunhou o revólver, tentou descobrir onde se escondia o gozador. O instrumento silenciou, os detidos foram enfiados nos carros, menos uma das mulheres. Ela esperneava e gritava.
Os aplausos aumentaram, a rebelde recebeu um safanão, cedeu. Os policiais saíram de sirena ligada, catei o porteiro para saber o que acontecera. Não o avistei, mas a mulher sem testa do terceiro andar me percebeu curioso, me cercou.
- Aqueles quatro- contou – promoveram uma gandaia. Bebida, tóxico, libidinagem. Alguém chamou a polícia.
- E a polícia veio logo? – perguntei por perguntar.
- Veio. Aliás, o senhor não é jornalista? O seu jornal tinha que denunciar essa sem-vergonhice. Nossa rua, principalmente nosso quarteirão, se tornou a lata de lixo de Copacabana, que já é uma enorme lata de lixo.
- Vou falar com o chefe de reportagem – prometi.
A mulher se animou, desfiou queixas. Ouvi um bom tempo, pedi licença, subi. No dia seguinte, falei com o chefe de reportagem. Ele, no entanto, não se interessou. A sem testa, sempre que me encontrava – e me encontrava com frequência – cobrava.
- Você prometeu... – dizia cheia de reticências.  
Acabei lhe explicando que eu não mandava no chefe de reportagem, a última palavra era dele.
- A senhora me desculpe, fiz o que pude.
Ela não desculpou, passou a me virar a cara.


Isso aconteceu há anos. Meses depois, me mudei de Copacabana, nunca mais passei por aquela rua. Nunca mais, até a última quarta-feira. Nesse dia, de repente me vi diante do edifício em que tinha morado por três anos. E, junto da porta, a olhar o movimento, estava a mulher sem testa. Engordara um pouco e a espessa franja, que ia do alto da cabeça às sobrancelhas, dando-lhe um aspecto entre anedótico e sinistro, embranquecera.
Me aproximei simpático, como vai a senhora, se lembra de mim? Ela espremeu os olhos, me procurando na memória, em dois segundos me localizou. Levantou o dedo, ergueu-se na ponta dos pés.
- E não lembraria? Você prometeu uma entrevista e não cumpriu a palavra. Tratante. O que te traz aqui? Boa coisa não deve ser.
Me deu uma banana e entrou.

***

Eu estava sozinho no Lamas, uma mulher alta e magra, com restos de beleza, aproximou-se, puxou a cadeira à minha frente, sentou-se.
- Sim? – foi o que consegui falar.
- Vai dizer que você não está me reconhecendo?
- Desculpe, mas...
- Beatriz, cara. Esqueceu?
- Bem...
- Será que até você vai me achar chata?, que diabo.
- Por favor, eu...
- Não sou chata, compreenda, sou sozinha, eu e o Olavinho, que passou fome quando o Olavo sumiu, minha família não me socorreu, me castigou porque eu tinha ido viver com um homem casado que me trataria mal, é o que dizia meu pai, e o velho estava coberto de razão, o Olavo me quebrou, me convenceu a largar o emprego, boba eu, e não me dava afeto, me agredia e me rebaixava, e amaldiçoava minha barriga, o nosso fil...
Parou de estalo, arregalou os olhos.
- Caramba, você não é o Manoel.
- Não, não sou o Manoel.
- A cara dele, essa cara de doido.
Levantou-se, procurou outra mesa. Pediu um chope e me mostrou a língua. Quem manda eu ter cara de Manoel, e de Manoel doido?

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Eu nunca tive qualquer empatia com Persio Arida, presidente do Banco Central no Governo FHC, nem havia razão para isso. Na verdade, na única vez que o vi de perto, faz tempo, no calçadão de Ipanema ou do Leblon, achei-o uma figura fosca. Não posso, porém, deixar de recomendar o texto em que ele lembra sua participação na luta contra a ditadura militar, publicado pela revista piauí de abril, nº 55, (“Rakudianai”, o título). Corajoso, comovente, espontâneo. Leitura obrigatória para quem procura entender um pouco mais cada dia este país desconcertante.    
  

                                                          

domingo, 10 de abril de 2011

Questão de inteligência


A cena ocorreu na Rua Buenos Aires, Centro, e eu assisti. Meio-dia, um grupo de curiosos cercava duas mulheres esfarrapadas, uma gorda, a outra esquelética. Elas discutiam aos berros, por pouco não se atracavam. A gorda falou mais alto:
- O menino é meu e tá acabado.
- Descarada – a magra retrucou. – Tu sabe que ele é meu filho.
Um barrigudo, de crespas costeletas, se intrometeu:
- Como que é teu se você é mulata escura e ele, branco?
- O pai dele – a mendiga explicou – era branco azedo, sangue de gringo.
O objeto da disputa, um menino de mais ou menos três anos, o nariz escorrendo, estava sentado no asfalto, entre as brigonas, inteiramente alheio à confusão em volta.
- O garoto – o barrigudo insistiu – deve saber de quem é filho. Ele que se manifeste.
- O pobrezinho – a mulata informou – não fala nem ouve. É surdo-mudo. Meu filho, podem crer.
- Mentirosa safada – a gorda acusou e cuspiu no chão.
A discussão não terminaria logo. Eu, com hora marcada, ia embora quando um homem de terno e gravata, rosto enrugado, curvou-se e ergueu o menino.
- Eu – disse – sei como resolver o problema. Sou juiz, vou levar o pequeno comigo. Tenho autoridade pra tanto.
A mulata abriu o choro.
- Não, pelo amor de Deus, não faz isso.
A gorda afinou:
- Se ele é autoridade, irmãzinha, a gente se ferramos.
- Não – a outra, desesperada -, não mereço.
O homem a olhou firme. E, num gesto leve e surpreendente, lhe entregou o garoto.
- Vai embora, leva teu filho.
A mãe disparou, o menino colado ao peito. A impostora pegou a direção oposta, também sumiu.
O barrigudo de costeletas bateu palmas.
- Gostei de ver, toma que o filho é teu. Gostei, me amarro em pessoas inteligentes, intelectas.
- Ora – o elogiado sorriu -, só copiei Salomão, Ele, sim, um homem inteligente... Bem, com licença.
Afastou-se. A roda de curiosos se desfez, ainda ouvi o barrigudo perguntar a não sei quem:
- E o dito Salomão, que apito apita esse tio?

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Outra de ignorância, historinha rápida, há anos contada e recontada no meio jornalístico:
O editor chegou para o chefe de reportagem, profissional dedicado mas de sólidos desconhecimentos. “Fulano, manda alguém  ao aeroporto amanhã cedo, vem aí o jesuíta Arrupe, o Papa Negro.” Fulano, querendo mostrar serviço: “Deixa comigo, chefe, manjo esse crioulo.”

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Sábado de manhã, o salão de barbeiro cheio. Ruído de tesouras e navalhas, rumor de dedos folheando revistas de mulher pelada, papos de dois centímetros de profundidade, risadas maliciosas. E, dominando tudo, o rádio com música de última qualidade.
De repente, porém, muda a música. Agora, Gal Costa canta Dorival Caymmi. Em segundos, o salão silencia. O silêncio da emoção, do respeito.
Grande Gal.
Grande grande grande Caymmi.

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A menina, quatro aninhos, tantas aprontou que o pai lhe deu umas palmadas no bumbum. Ela choramingou, ele, sentindo-se culpado, tentou conversar: - Filha, por que você fez tudo isso?
A espertinha, toda caras e bocas: - Ah, pai, porque sou criança.

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Falando em criança, nada a escrever sobre a chacina na escola de Realengo. Pelo menos, por enquanto. O horror me trava.




segunda-feira, 4 de abril de 2011

A próstata, essa porcaria

Março, dia 5, sábado de carnaval – O celular marca 7h47, chegou a hora. Dois funcionários do hospital, um negro e um branco, entram, me cumprimentam e param a maca rente à cama. Rolo desta para aquela, a dupla de condutores manobra para fora do quarto, mal troco um carinho de mão com Maria Luiza. A maca avança em boa velocidade pelos corredores, à direita e à esquerda, minha paisagem é o teto, aí me assalta o ímpeto de escapulir, desculpem, senhores, mas não vou me operar, me operar pra quê?, foi uma ideia maluca, passou, minha próstata está cem por cento, no tamanho certo, urino bem, jato forte, de noite durmo um sono celestial, nunca me levanto para ir à privada.

Invadimos o centro cirúrgico, me transfiro para a mesa, ressurge a anestesista. Há pouco, no quarto, depois de um papo rápido do auxiliar do cirurgião, ela se apresentou. Perguntou se tenho alergia a algum remédio e disse que, em seguida, eu tomaria um comprimido para dormir, só para dormir, relaxar, não é anestesia, a anestesia vai ser raquidiana, uma picadinha nas costas, você não vai sentir dor, há anestésico de sobra e eu estarei a postos. A contragosto, com medo de omitir a informação e me prejudicar, eu disse que tenho na boca uma prótese provisória, seria preciso retirá-la? Respondeu que não, mas, por precaução, pediu que eu lhe mostrasse a prótese e a removesse por um instante. Obedeci e fiz humor, você não está vendo isso. Balançou a cabeça com ênfase, não, claro que não. Simpática.

Agora, no centro cirúrgico, com roupa de trabalho, gorro e roupa verdes, a anestesita parece mais séria. Pergunta se já estou com sono, digo que mais ou menos e olho em torno em busca do cirurgião, cadê o doutor...?  Está vindo, me diz a séria/simpática, não demora. Por mim, penso, pode demorar, pode até não vir, é isso, ele não vem e eu não sou operado. E então, de estalo, me lembro do comentário de minha mãe, anos atrás, numa conversa familiar: essa tal de próstata é mesmo uma porcaria!
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Acordo, percebo uma movimentação ao redor, alguém (a anestesista?) me diz que a cirurgia acabou, foi fácil. O cirurgião (sim, ele veio) exibe um vidrinho com o que perdi (ganhei?) da próstata e me dá os parabéns. Sem ter o que dizer, retribuo.
A movimentação continua, meio que me irrita, se a cirurgia acabou por que não voltamos logo pro quarto?, e, agora, à ligeira irritação junta-se uma ponta de aflição, é que não movimento as pernas. O cérebro dá a ordem, vamos, mexam-se, elas o ignoram. Comunico o fato à anestesista, ela me tranquiliza, terminado o efeito da anestesia tudo se normaliza.
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De novo no quarto, na cama. Maria Luiza me afaga o rosto, diz que estou bem. É verdade, me sinto bem. Ou melhor, não me sinto mal. Deitado de costas, me vejo ligado a duas bolsas de soro, uma se esvazia na veia do braço esquerdo, a outra, um enfermeiro ensina, irriga a bexiga. Baixo os olhos e vislumbro a sonda na uretra. Não dói, quase não incomoda. Ouço a voz do cirurgião, ele se aproxima, nas mãos um envelope quadrado, fino e pequeno. Um presente pra você, me dá o envelope, o disco com a gravação da cirurgia, não deixe de assistir. Agradeço, enfim virei artista.
Mulher de palavra, a anestesista simpática: as pernas se mexem. As pernas se mexem, o pé direito coça. Assim que puder, decido, vou bater uma bola. E, como acontece de vez em quando, me arrependo de ter abandonado as peladas antes dos 30 anos. Eu driblava bem, ao estilo Garrincha (verdade!), e, como a maioria dos garotos brasileiros de minha geração, sonhei em ser craque, uma mistura de Garrincha com Pelé. Não custei a desistir do sonho, eu era bom driblador, não craque. Mas não devia ter pendurado as chuteiras tão cedo (o micróbio do futebol não esmorece, sempre me alegra chutar de volta para os peladeiros a bola que, perdida por eles, vem interromper minha caminhada vespertina no Aterro do Flamengo).
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A nutricionista do hospital se identifica, avisa que o almoço será líquido-pastoso. Recita as opções do cardápio, escolho creme de aspargos, suco de abacaxi e sorvete de creme. Maria Luiza resolve almoçar num restaurante de shopping, perto daqui.
Chega Antonia, me beija, pai, como você está? Diz que a mãe telefonou de Hanói (viagem de férias com o namorado, gringo). Perguntou se eu não tinha morrido (rarrarrá) e contou que, num tombo, quebrara um dente (coitada, logo em Hanói), mas não era grave. Beija Maria Luiza, confirma que ela dormirá hoje e amanhã no hospital, e pede que, se for possível (pai, SE FOR POSSÍVEL, entendeu?, se não, não), eu a dispense do combinado de me acompanhar nas outras duas noites de internação, é que as amigas vão sair em vários blocos e ela gostaria de ir junto. Finjo desgosto: puxa, filha, eu operado, e você pensando em pular o carnaval. Antonia compõe, pai, se não der não deu, você em primeiro lugar. A espertinha me comove, prometo estudar seu pedido desde que ela entre no saite do hotel-fazenda em que Artur passa o carnaval com um bando de colegas e me dê notícias dele. A reação é típica do recém-adulto que não tem paciência com adolescentes: ah, pai, pra que entrar no saite?, o Artur está que nem pinto no lixo, pare de tratar o filhinho como um pobre indefeso. Endureço, ou ela me dá notícias do irmão ou..., a mocinha petulante (e linda) recua, vai entrar no saite. Fico satisfeito, ora ora, estou com uma sonda na uretra, mas ainda não me rendi.    
Meio-dia e meia, Maria Luíza e Antonia saem para o shopping. Almoço devagar, a tevê ligada no noticiário. Estou atacando o sorvete, chegam os pais de minha ex-mulher. Eles se espantam por eu haver concordado com a cirurgia no sábado de carnaval, explico que, sendo operado no sábado e saindo de alta na quarta-feira de cinzas (o cirurgião me disse que eu penaria quatro dias de hospital), terei aproveitado bem um feriadão morto, afinal não sou carnavalesco (já fui, já fui). E, súbita lembrança, conto que é a segunda cirurgia a que me submeto num sábado de carnaval, aos 12 anos, no cabide uma caprichada fantasia de palhaço, tive de extrair o apêndice supurado. Os velhos (mais que eu, mais que eu) me fitam de modo diferente. Que estranho, a ex-sogra cochicha. O tom me desagrada, sinto vontade de perguntar, estranho por quê? Fico na vontade, se perguntasse soaria grosseiro e os pais da mãe dos meus filhos (bravo!) são bons amigos, não merecem grosseria.
(A propósito da palavra ex-sogra, já ouvi de um advogado que juridicamente não existe ex-sogra. Uma vez sogra, eternamente sogra. Pode ser, mas este não é um texto jurídico).
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As pernas doem. Uma dor vertical, repuxante. Antonia e os avós foram embora, eu e Maria Luíza conversamos sobre o pega-kadafi na Líbia, o samba paulista, a dor nas pernas e o bom serviço do hospital. Desde que voltei do centro cirúrgico, a períodos regulares a enfermagem esvazia num baldinho a bolsa de urina (vermelha, rosa, mais para o amarelo), renova as bolsas de soro, mede a pressão, a temperatura, os batimentos cardíacos e a saturação de oxigênio, traz os remédios que preciso tomar e lembra que devo beber bastante água, a geladeira está cheia de copos de água mineral e de coco. Além disso, já apertei a campanhinha algumas vezes, e a enfermagem atendeu com presteza. O hospital é bom, sem dúvida, e eu mereço, há anos o plano de saúde me arranca a pele.
A visita médica da noite. O auxiliar do cirurgião gosta da cor da urina e diz que, se eu continuar evoluindo bem, amanhã de manhã ele me libera para caminhar no corredor. Comemoro e peço um analgésico para as pernas pararem de doer. Um analgésico e um remédio para dormir. Ele aprova o analgésico, não o remédio para dormir, em vez do remédio para dormir, vai prescrever um indutor do sono. Para mim, reles leigo, é tudo igual, maravilha, vamos de indutor do sono.
O quarto esfriou demais, Maria Luiza desliga o ar refrigerado e abre a janela. Do fundo da noite, vem uma gostosa batucada. Deve ser um bloco, ele está a, calculo, três ou quatro quarteirões daqui. Skindô, ziriguidum, sou do tempo do skindô, do ziriguidum. Sou da Geração Paisandu, Godard, Trouffaut etc etc. Pipoca uma ideia: pôr uma batucada como fundo musical do filme da cirurgia e programar uma sessão-coquetel para parentes e amigos. Hoje, em cartaz, “A próstata, essa porcaria”. O mais puro cinema-cabeça.
Perdão, pessoal, a culpa é do tédio hospitalar.

Dia 6, domingo – Ontem, quis ver as escolas de samba de São Paulo, não consegui, apaguei no começo do desfile. O analgésico anestesiou as pernas e o indutor do sono, eficiente, me induziu ao sono.
Dormi cedo, acordo cedíssimo. Pigarreio, Maria Luíza senta-se no sofá de acompanhante. Bom dia, como vamos? Indo, respondo, e peço que ela feche a janela e religue o ar refrigerado, o dia vai ser quente.
A recepção diz que o jornal no meu nome ainda não chegou, chegando, trazem aqui. Um enfermeiro se oferece para me dar banho e mudar os lençois. Sem o senhor sair da cama, nenhum problema. Não disfarço a incredulidade, ele se agita e, num quarto de hora, conclui a tarefa. Banho de panos úmidos e de boa enxugação, lençóis substituídos. É, tudo é questão de técnica.
Me distraio a rodar os canais da tevê, estaciono num programa sobre plantações, granjas e fazendas. Surpresa, eu (urbano radical) gosto. Em meio ao parto de uma égua, chega a copeira com a bandeja de café.
E a dor nas pernas reacende. Coisa de louco, opero a próstata, as pernas se rebelam.
***  
O auxiliar do cirurgião cumpre a promessa, estou livre para caminhar. Manda a enfermagem desconectar as bolsas de soro, diz que agora preciso beber ainda mais líquido. Me queixo das pernas, ele é incisivo: tome banho e caminhe no corredor que a dor some. Escondo que o enfermeiro me lavou, constrangido confesso que tenho vergonha de sair do quarto. A camisola de internado, a sonda, a bolsa de urina... Recebo uma lição: bobagem, você está num hospital. E uma sugestão: faça de conta que a bolsa de urina é o seu cachorrinho. O piadista busca a porta, mas para: você evacuou? Respondo que hoje não, a última vez foi ontem de manhãzinha, em casa, ao acordar para vir para cá. Muito tempo, vou então tomar um regulador do intestino. Sim, nada contra (indutor do sono, regulador do intestino, acabo dominando a linguagem), e a sonda, até quando?. O doutor responde com a mão na maçaneta, até quarta-feira, ali pelas 6 horas de quarta-feira a enfermagem retira a sonda. Me assusto, a enfermagem?, não é trabalho de médico? Aprendo que não, retirar a sonda é tarefa comezinha, sem qualquer segredo. Que bom, falo por falar, e me animo, sem sonda às 6 horas, às 9 chego em casa, às 10 talvez... A mão se afasta da maçaneta, e a notícia ruim me encara: não, só volto para casa na quinta-feira, a alta ocorre um dia depois da retirada da sonda, são necessárias 24 horas de observação. Cacilda, cinco dias de hospital? O cirurgião não falou em quatro? Ou eu entendi mal? Bem, não vem ao caso, como dizia uma ex-freira, minha amiga dos tempos da ditadura, caralho caralhinho caralhão, me fodi nessa.
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Engulo o regulador do intestino, me preparo para passear no corredor. Aí descubro que, exceto na altura da nuca, onde duas tiras permitem um laço, a camisola é aberta de alto a baixo. Passear assim, de bunda ao vento? Chamo a enfermagem, uma loura esguia me socorre colando pedaços de fita crepe até a altura das coxas. Faz mais: rasga um metro de gaze, cria uma alça para eu levar a bolsa de urina a tiracolo. Virei fashion. Posso ir agora? A esguia garante que sim, eu vou.  
Vinte minutos de passeio, volto para o quarto. A recepção entregou o jornal, me ajeito na poltrona macia para lê-lo. Da primeira para a segunda página, uma cólica me obriga a escorregar para o banheiro (poderoso o tal regulador do intestino). Ergo a camisola, me abanco na privada. Me contraio um pouco, sai sangue da uretra, por fora da sonda. Não chego a me preocupar, deve ser normal.
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A nutricionista traz a novidade, as refeições não serão mais líquido-pastosas. Escolho o almoço, ela sugere que eu também defina o jantar. Sensação de estar sendo atropelado, reajo com delicadeza de doente, minha querida, não pode ser depois? Pode, pode, na hora que eu quiser. Voz de doce menina, cara de mulher contrariada. Tadinha.
Retomo o jornal. Para superar a lentidão do relógio, troco a leitura em diagonal de velho jornalista, por uma leitura minuciosa. Céus, como se escreve besteira.
Almoço, faço a digestão no corredor. Disciplinadamente. Antonia aparece. De passagem, pois tem bloco. Entrou no saite do hotel-fazenda, Artur está na dele, a mil. 
***
A tarde se vai, as pernas doem. Não adiantou ser disciplinado. Vou pedir repeteco do analgésico e do indutor do sono. Se dormir cedo, amanhã vejo pela tevê o resumo da primeira noite de desfile na Sapucaí. 

Dia 7 – As imagens selecionadas mostram um espetáculo de respeito, mas não a ponto de empolgar quem já assistiu a ene desfiles. Os jovens, claro, os jovens e os turistas devem ter adorado (mas jovem e turista perdem fácil a cabeça).   
Evacuo (segundo minha ex-mulher, médica, o verbo defecar é horrível de feio; se é horrível de feio, não uso), tomo café e banho de chuveiro, a bolsa de urina no chão, me olhando como o cão que jamais se separa do dono.
Insisto em caminhar no corredor. Guerra às pernas subversivas.
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Maria Luiza dormirá sua terceira noite aqui, resolvemos dispensar Antonia. Homenagem à sua juventude ávida de folia. Mas, por enquanto, a dispensa é só para hoje, como dizem os sábios amanhã é outro dia.
Pelas paredes escorre uma monotonia atroz.

Dia 8 – Na tevê, o resumo da segunda noite na Sapucaí. A primeira foi melhor, uma noite republicana.
Café, banho, jornal, enfermeiros, corredor, médico, nutricionista – a rotina em estado bruto. A rotina da rotina. Eu me pirulito depois de amanhã, antes do meio-dia, sou sortudo, e já estou às margens da depressão, imaginem o espírito de quem vara semanas ou meses no hospital. Ou a gente se acostuma?
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E de repente, em meio à pasmaceira, constato que as pernas não doem mais. Desistiram. Por que doíam, por que pararam de doer? Nos envie sua resposta e se candidate a um balaio de prêmios.
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O auxiliar do cirurgião confirma a retirada da sonda amanhã cedo e diz que, uma hora-uma hora e meia depois, eu devo sentir vontade de urinar. Vou urinar a intervalos curtos, o jato fraco como antes da cirurgia, que eu não me inquiete, é assim mesmo. Pede que eu urine sempre no baldinho e avise a enfermagem, para se anotarem as quantidades. E, disparo a pergunta, se eu não urinar? Bem, o médico fala manso, se eu não urinar a sonda é reposta, eu vou para casa com ela e, daqui a uma semana, volto para retirá-la. Bem feito, por que perguntei? Pergunta desnecessária, masoquista. O medo de reter a urina me arrepia, chegar em casa de sonda, o máximo da humilhação. O que dizer aos porteiros? Antes da humilhação a dor, se repuserem a sonda sem anestesia vai doer à beça. Formo a imagem de um lápis de ponta cortante me lacerando a uretra (Por que um lápis, e não uma vareta ou um prego ou uma agulha comprida? Sei lá, não tenho ideia).   
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Antonia veio para dormir. Iniciativa dela, você precisa descansar, diz a Maria Luiza. Filha magnífica, canto o elogio, ela dá o troco, me chama de venerável ancião. Maria Luiza vai embora, eu e Antonia esticamos um bom papo - a vitória da Vai-Vai no desfile das escolas de samba de São Paulo, o trote na faculdade de direito, na semana que vem (os calouros terão de pedir dinheiro na rua e ela já me pede algum), os filmes em cartaz e o romance que ela está lendo, a matrícula no curso de alemão, o sexo só com preservativo (não sou louca, pai) e as artes de Artur. Pai, o Artur está muito rebelde, mal-criado, fala palavrões pras minhas amigas, não é por que tem só 12 aninhos que pode fazer isso, você precisa conversar com ele. Eu digo que sim, óbvio, o Artur deve se comportar, ser um menino educado, prometo que o chamarei às falas. A filha magnífica e eu nos damos as mãos, momento de leveza. De leveza e de curiosidade, filhota, fale, que palavrões o Artur diz pras tuas amigas?

Dia 9, quarta-feira de cinzas – Seis e meia da manhã, a enfermeira que vai retirar a sonda me acorda. Respondo ao bom dia, me ajeito na cama. Numa bandejinha de aço ela traz um pedaço de gaze e uma seringa sem agulha. Tenso, sigo a operação: a enfermeira destapa uma entrada secundária da sonda, enfia a seringa. Puxa o êmbolo, a seringa se enche de água. Puxa a seringa, derrama a água no pedaço de gaze. Essa água, ouço, depositada numa bolsinha, impedia que a sonda escapasse da uretra. Ah, é?, e eu todo esse tempo temendo que, num movimento mais brusco, a sonda se soltasse. Minha ignorância provoca um risinho sacana, com meneio de cabeça, e eu tenho uma momentosa aula: por dentro da sonda existem três vias: a que chega à bolsinha de água, a que transportava o soro que no primeiro dia irrigou a bexiga e a que expele a urina sanguinolenta para a bolsa-cachorrinho.
Uma ciência a mais para eu professorar no botequim xexelento em que bebo cerveja, mas agora vamos ao que interessa, a retirada da sonda. Vai doer, não vai doer?, a enfermeira tem mãos treinadas, a sonda vai saindo, saindo, saiu. Dor não houve, houve pequeno desconforto. E a operação foi rápida e sem maiores ruídos, no sofá Antonia continua a dormir.
Do pequeno desconforto ao conforto pleno, liberto do olho da enfermeira, que já se escafedeu, ensaio passos de dança. Ridículo. E daí?, danem-se, estou contente.
O contentamento, porém, não se sustenta, reinstala-se o receio de não urinar e ter de ir de sonda para casa.
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Aleluia, aleluia, uma hora e dez minutos depois da retirada da sonda, estou urinando. No baldinho, como menino obediente. Arde, mas pode arder, quero é que arda.
Quarenta minutos mais tarde, estou urinando. No baldinho, naturalmente. Isso, vamos arder.
Mais 20 minutos, ao baldinho. Ar-den-do, ar-den-do.
Antonia acordou e partiu, na quarta de cinzas não falta bloco nas ruas. E olha eles aí, o auxiliar do cirurgião e o cirurgião, hoje o chefe veio. Nos cumprimentamos, o cirurgião indaga como estou, ótimo, estou ótimo, a urina mais solta, o jato ainda fraco, como me preveniram, mas a urina mais solta... Então o chefe golpeia, que bom, mas vai piorar. Hein, como? Sim, por causa do edema vai piorar. Simpático (por falar em simpatia, cadê a anestesista que me paralisou as pernas?), ele explica, a piora durará dias, até que, devagarinho, à medida que o edema diminuir e a bexiga encher, o jato ganhará força. 
Eles saem, eu careteio para o espelho do banheiro. Por que viver é tão complicado?
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Decido não me abater, vou piorar, vou melhorar, os doutores disseram, vale o que eles disseram. Quem me ajuda a afastar as nuvens cinzentas é Ruth, minha companheira de trabalho. Visita agradável, engrenamos um papo sobre nossa condição de pais tardios, as delícias e as dificuldades, derivamos para problemas de dinheiro e pormenores da cirurgia. Ela ouviu por aí que eu me submeteria a uma raspagem da próstata, mas para quê? Para voltar a urinar sem esforço, respondo, a próstata estufou, comprimia a bexiga e a uretra, a urina saía a prestações. Didático, dou o nome oficial da cirurgia, Ressecção Transuretral da Próstata, Ruth se assombra, foi pela uretra?, não acredito, a uretra é tão estreita. Pobre iludida, ela não sabe do que os médicos são capazes, os médicos, minha cara repórter, com seus poderes mágicos, transformam a uretra no Túnel Rebouças, numa galeria de Itaipu. Ruth ri.
Patatipatatá, eu conto que, em conseqüência da cirurgia, daqui em diante vou ejacular para a bexiga. Ruth franze as sobrancelhas, sério?, você está inventando. Banco o ofendido, eu inventando?, é seriíssimo, PORRA. Ela recomeça a rir, eu me contagio, gargalhamos até as lágrimas.
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Venceu a Beija-Flor. Somos um país de reis e rainhas.
Anoitece. Amanhã de manhã a alta, dou o último giro pelo andar. Maria Luiza chega para nossa noite de despedida do hospital. Pelo menos nesta temporada.

Dia 10 – Oito horas, estamos prontos para nos mandarmos, será que o médico demora para vir dar a alta? Nem acabo de falar, o auxiliar do cirurgião abre a porta. Me examina, tudo de acordo com o esperado, passa uma lista de recomendações para os próximos 30 dias e pede que eu leia. Eu leio: evitar sexo, café, chá preto, mate, coca-cola, bebida alcoólica, pimenta, esforço físico, ficar sentado e prender a urina por muito tempo; não sair do Rio, fora de casa usar absorvente e avisar em caso de febre ou sangramento.
Algo a esclarecer? Digo que não, o médico lembra que por uns 40 dias haverá ardência e que eu tenho de marcar a primeira revisão para a semana que vem. Nos abraçamos, ele escreve acima das recomendações o número do seu celular e do celular do cirurgião e me congratula por eu ter sobrevido aos... médicos. O rapaz tem humor.
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   Superada a parte burocrática na secretaria, pegamos o carro de Maria Luiza. Para eu não ficar sozinho, vou convalescer na casa dela. Ganas de ouvir música, ligo o rádio na MEC. Hora do noticiário: Obama vai visitar uma favela, a inflação deve diminuir no segundo semestre, o partido da deputada que recebeu dinheiro ilegal afirma que ela tem boa índole, reforma fará do Maracanã o estádio mais moderno do mundo, previsto para hoje ou amanhã um tremor de terra na costa do Japão.
Música. Variações sobre um tema de Haydn, Brahms é magistral. Sol de verão-outono, contornamos a Enseada de Botafogo, uma onda de alegria me lambe da cabeça aos pés.
Chegamos à garagem de Maria Luiza, o elevador nos espera. Subimos, ela abre o apartamento, eu entro e escancaro o janelão da sala. O trânsito, os prédios, os terraços, os jardins suspensos, as piscinas, os telhados escurecidos, os morros e a mata, a pedra soberana do Pão de Açúcar - a alegria incha, vira euforia, e eu vibro por estar inteiro e morar neste paraíso infernal.