Papai Noel existia, eu o tinha visto numa loja – a barba branca, o cajado, a roupa vermelha -, ele até perguntou meu nome. Mas a história do coelhinho que deixava os ovos de chocolate debaixo da cama das crianças obedientes era absurda.
Convencido de que me iludiam, desafiei os adultos de casa, não há coelhinho nenhum, quem aposta comigo? Apostamos dois cruzeiros, eu contra o resto da família. Audacioso, avisei que de sábado para domingo não dormiria, pronto para flagrar o mentiroso que entrasse macio no quarto, a cestinha de chocolate na mão.
Ninguém acreditava que eu varasse a noite acordado, mas o fato é que, por respeito à minha firmeza de criança, ou, sei lá, por medo da desmoralização, os adultos se renderam – pois bem, não há coelhinho.
Ah é, e os dois cruzeiros? Peguei a moeda, corri ao bar da esquina, comprei quatro caixinhas de chiclete de hortelã. A delícia quadruplicada. Me proibiam de mascar chiclete, estragava os dentes e colava no estômago, mas, naquele dia de glória, ninguém teve a coragem de me contrariar.
Anos mais tarde, no colégio marista, Papai Noel também rifado, me disseram que no domingo de Páscoa Jesus ressuscitara e ascendera aos céus. Este e outros ensinamentos desfiados nas aulas de religião – o mistério da Santíssima Trindade, Adão e Eva, a virgindade de Maria, o perigo do pecado (pecava-se por ações e por maus pensamentos), o Juízo Final – me transportavam para a já surrada história do coelhinho. Difícil crer.
Mas não crer também era difícil, quem não cresse, dizia o catecismo, conheceria o fogo ininterrupto do inferno. E sem direito a chiclete de hortelã, brincava com meus diabinhos.
Não dava para brincar o tempo todo, a ameaça do castigo eterno assustava. E se eu estivesse errado, eu que relutava em acreditar em Deus, uno ou trino, eu que quase só tinha maus pensamentos – incontroláveis, maravilhosos. Condenado para sempre? O medo provocava arrepios.
Até que um dia veio a luz: jamais terei certeza da existência ou não de Deus, negá-lo é tão pretensioso quanto afirmá-lo, de indubitável mesmo só a dúvida. Logo, a ordem é relaxar e viver da maneira mais digna possível.
Sem saber, me tornara agnóstico, encontrara minha fé, que às vezes, em momentos de preguiça ou megalomania, troco pela simplificação do ateísmo.
Havia entretanto outros deuses. No primeiro ano de faculdade, os olhos da primeira juventude escancarados para o mundo, um colega mais velho, hoje historiador citado, me garantiu que o comunismo era o estuário natural da humanidade. Ousei perguntar-lhe de onde vinha tanta segurança, ele fulminou: “Bolas, nenhum país que abandonou o capitalismo voltou atrás.”
Em 91, em Berlim, ao encontrar camelôs oferecendo pedaços de pedra ou cimento que teriam sido do Muro, e mais fardas e objetos de soldados soviéticos que partiram ou desertaram, pensei em comprar uma bota furada e enviá-la ao nosso historiador.
Ele certamente não entenderia, não nos víamos havia vinte e tantos anos. Aliás, acho que depois daquela nossa conversa, não voltamos a nos falar. Ele ficou com seu brilhante argumento, eu com a minha encabulada dúvida.
Encabulada mas utilíssima, graças a ela em nenhum instante da longuíssima noite militar derrapei naquele ufanismo mofado e perigoso. Perigoso e horripilante.
Noite longuíssima, mas não interminável. Mal ou bem, a ditadura estrelada ruiu, bem ou mal remontamos à democracia. E é em nome da democracia, regime avesso a todo dogmatismo, que eu aproveito a Páscoa, festa de ressurreição, para reerguer o sagrado estandarte da dúvida. Com direito a chiclete de hortelã.
@@@@@
Duas frases sábias, tiradas do baú.
De dom Pedro Casaldáliga, bispo que se notabilizou por combater a ditadura: “Fernando Henrique (então presidente da República) era melhor quando era ateu.”
De uma sem-teto de São Paulo: “Se tiver dinheiro, vou comer, não vou pagar aluguel.”
@@@@@
E, para concluir, a frase bem-humorada de um empresário, ao comunicar aos amigos, em jantar recente, que estava abandonando de vez a cocaína: “Ou a carreira ou as carreiras.”
Magay, como vai?
ResponderExcluirAndei muito ocupado, por isso não pude comentar antes o texto "Ressurreição". Achei bom, mas o mais interessante é que eu também, no tempo de criança, adorava chiclete de hortelã. Aliás, até hoje eu gosto.
E como vai nossa amiga Teresa?
Abraço, Igor Matoni
Não me provoca, Igor. Tou aqui e estava estranhando sua ausência. Abandonou seu amigo ? Sabe, eu tbém gostava desse chiclete, caixinha amarela de hortelã, rosa, de frutas ... Dois quadradinhos dentro de cada uma delas. às vezes eu misturava tudo. Será que ainda existem ?
ResponderExcluirVoltando ao coelhinho... acreditar mesmo eu não sei mas sempre ficava na expectativa de ganhar ovinhos. Agora, confesso que a figura do Papai Noel me aterrorizava um pouco. Não curto muito. Mas, tradição é tradição e a gente passa isso adiante.
Impressionante a força de união do chiclete de hortelã. Estou comovido.
ResponderExcluirPODÍAMOS DESENVOLVER UMA TESE !
ResponderExcluir