Março, dia 5, sábado de carnaval – O celular marca 7h47, chegou a hora. Dois funcionários do hospital, um negro e um branco, entram, me cumprimentam e param a maca rente à cama. Rolo desta para aquela, a dupla de condutores manobra para fora do quarto, mal troco um carinho de mão com Maria Luiza. A maca avança em boa velocidade pelos corredores, à direita e à esquerda, minha paisagem é o teto, aí me assalta o ímpeto de escapulir, desculpem, senhores, mas não vou me operar, me operar pra quê?, foi uma ideia maluca, passou, minha próstata está cem por cento, no tamanho certo, urino bem, jato forte, de noite durmo um sono celestial, nunca me levanto para ir à privada.
Invadimos o centro cirúrgico, me transfiro para a mesa, ressurge a anestesista. Há pouco, no quarto, depois de um papo rápido do auxiliar do cirurgião, ela se apresentou. Perguntou se tenho alergia a algum remédio e disse que, em seguida, eu tomaria um comprimido para dormir, só para dormir, relaxar, não é anestesia, a anestesia vai ser raquidiana, uma picadinha nas costas, você não vai sentir dor, há anestésico de sobra e eu estarei a postos. A contragosto, com medo de omitir a informação e me prejudicar, eu disse que tenho na boca uma prótese provisória, seria preciso retirá-la? Respondeu que não, mas, por precaução, pediu que eu lhe mostrasse a prótese e a removesse por um instante. Obedeci e fiz humor, você não está vendo isso. Balançou a cabeça com ênfase, não, claro que não. Simpática.
Agora, no centro cirúrgico, com roupa de trabalho, gorro e roupa verdes, a anestesita parece mais séria. Pergunta se já estou com sono, digo que mais ou menos e olho em torno em busca do cirurgião, cadê o doutor...? Está vindo, me diz a séria/simpática, não demora. Por mim, penso, pode demorar, pode até não vir, é isso, ele não vem e eu não sou operado. E então, de estalo, me lembro do comentário de minha mãe, anos atrás, numa conversa familiar: essa tal de próstata é mesmo uma porcaria!
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Acordo, percebo uma movimentação ao redor, alguém (a anestesista?) me diz que a cirurgia acabou, foi fácil. O cirurgião (sim, ele veio) exibe um vidrinho com o que perdi (ganhei?) da próstata e me dá os parabéns. Sem ter o que dizer, retribuo.
A movimentação continua, meio que me irrita, se a cirurgia acabou por que não voltamos logo pro quarto?, e, agora, à ligeira irritação junta-se uma ponta de aflição, é que não movimento as pernas. O cérebro dá a ordem, vamos, mexam-se, elas o ignoram. Comunico o fato à anestesista, ela me tranquiliza, terminado o efeito da anestesia tudo se normaliza.
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De novo no quarto, na cama. Maria Luiza me afaga o rosto, diz que estou bem. É verdade, me sinto bem. Ou melhor, não me sinto mal. Deitado de costas, me vejo ligado a duas bolsas de soro, uma se esvazia na veia do braço esquerdo, a outra, um enfermeiro ensina, irriga a bexiga. Baixo os olhos e vislumbro a sonda na uretra. Não dói, quase não incomoda. Ouço a voz do cirurgião, ele se aproxima, nas mãos um envelope quadrado, fino e pequeno. Um presente pra você, me dá o envelope, o disco com a gravação da cirurgia, não deixe de assistir. Agradeço, enfim virei artista.
Mulher de palavra, a anestesista simpática: as pernas se mexem. As pernas se mexem, o pé direito coça. Assim que puder, decido, vou bater uma bola. E, como acontece de vez em quando, me arrependo de ter abandonado as peladas antes dos 30 anos. Eu driblava bem, ao estilo Garrincha (verdade!), e, como a maioria dos garotos brasileiros de minha geração, sonhei em ser craque, uma mistura de Garrincha com Pelé. Não custei a desistir do sonho, eu era bom driblador, não craque. Mas não devia ter pendurado as chuteiras tão cedo (o micróbio do futebol não esmorece, sempre me alegra chutar de volta para os peladeiros a bola que, perdida por eles, vem interromper minha caminhada vespertina no Aterro do Flamengo).
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A nutricionista do hospital se identifica, avisa que o almoço será líquido-pastoso. Recita as opções do cardápio, escolho creme de aspargos, suco de abacaxi e sorvete de creme. Maria Luiza resolve almoçar num restaurante de shopping, perto daqui.
Chega Antonia, me beija, pai, como você está? Diz que a mãe telefonou de Hanói (viagem de férias com o namorado, gringo). Perguntou se eu não tinha morrido (rarrarrá) e contou que, num tombo, quebrara um dente (coitada, logo em Hanói), mas não era grave. Beija Maria Luiza, confirma que ela dormirá hoje e amanhã no hospital, e pede que, se for possível (pai, SE FOR POSSÍVEL, entendeu?, se não, não), eu a dispense do combinado de me acompanhar nas outras duas noites de internação, é que as amigas vão sair em vários blocos e ela gostaria de ir junto. Finjo desgosto: puxa, filha, eu operado, e você pensando em pular o carnaval. Antonia compõe, pai, se não der não deu, você em primeiro lugar. A espertinha me comove, prometo estudar seu pedido desde que ela entre no saite do hotel-fazenda em que Artur passa o carnaval com um bando de colegas e me dê notícias dele. A reação é típica do recém-adulto que não tem paciência com adolescentes: ah, pai, pra que entrar no saite?, o Artur está que nem pinto no lixo, pare de tratar o filhinho como um pobre indefeso. Endureço, ou ela me dá notícias do irmão ou..., a mocinha petulante (e linda) recua, vai entrar no saite. Fico satisfeito, ora ora, estou com uma sonda na uretra, mas ainda não me rendi.
Meio-dia e meia, Maria Luíza e Antonia saem para o shopping. Almoço devagar, a tevê ligada no noticiário. Estou atacando o sorvete, chegam os pais de minha ex-mulher. Eles se espantam por eu haver concordado com a cirurgia no sábado de carnaval, explico que, sendo operado no sábado e saindo de alta na quarta-feira de cinzas (o cirurgião me disse que eu penaria quatro dias de hospital), terei aproveitado bem um feriadão morto, afinal não sou carnavalesco (já fui, já fui). E, súbita lembrança, conto que é a segunda cirurgia a que me submeto num sábado de carnaval, aos 12 anos, no cabide uma caprichada fantasia de palhaço, tive de extrair o apêndice supurado. Os velhos (mais que eu, mais que eu) me fitam de modo diferente. Que estranho, a ex-sogra cochicha. O tom me desagrada, sinto vontade de perguntar, estranho por quê? Fico na vontade, se perguntasse soaria grosseiro e os pais da mãe dos meus filhos (bravo!) são bons amigos, não merecem grosseria.
(A propósito da palavra ex-sogra, já ouvi de um advogado que juridicamente não existe ex-sogra. Uma vez sogra, eternamente sogra. Pode ser, mas este não é um texto jurídico).
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As pernas doem. Uma dor vertical, repuxante. Antonia e os avós foram embora, eu e Maria Luíza conversamos sobre o pega-kadafi na Líbia, o samba paulista, a dor nas pernas e o bom serviço do hospital. Desde que voltei do centro cirúrgico, a períodos regulares a enfermagem esvazia num baldinho a bolsa de urina (vermelha, rosa, mais para o amarelo), renova as bolsas de soro, mede a pressão, a temperatura, os batimentos cardíacos e a saturação de oxigênio, traz os remédios que preciso tomar e lembra que devo beber bastante água, a geladeira está cheia de copos de água mineral e de coco. Além disso, já apertei a campanhinha algumas vezes, e a enfermagem atendeu com presteza. O hospital é bom, sem dúvida, e eu mereço, há anos o plano de saúde me arranca a pele.
A visita médica da noite. O auxiliar do cirurgião gosta da cor da urina e diz que, se eu continuar evoluindo bem, amanhã de manhã ele me libera para caminhar no corredor. Comemoro e peço um analgésico para as pernas pararem de doer. Um analgésico e um remédio para dormir. Ele aprova o analgésico, não o remédio para dormir, em vez do remédio para dormir, vai prescrever um indutor do sono. Para mim, reles leigo, é tudo igual, maravilha, vamos de indutor do sono.
O quarto esfriou demais, Maria Luiza desliga o ar refrigerado e abre a janela. Do fundo da noite, vem uma gostosa batucada. Deve ser um bloco, ele está a, calculo, três ou quatro quarteirões daqui. Skindô, ziriguidum, sou do tempo do skindô, do ziriguidum. Sou da Geração Paisandu, Godard, Trouffaut etc etc. Pipoca uma ideia: pôr uma batucada como fundo musical do filme da cirurgia e programar uma sessão-coquetel para parentes e amigos. Hoje, em cartaz, “A próstata, essa porcaria”. O mais puro cinema-cabeça.
Perdão, pessoal, a culpa é do tédio hospitalar.
Dia 6, domingo – Ontem, quis ver as escolas de samba de São Paulo, não consegui, apaguei no começo do desfile. O analgésico anestesiou as pernas e o indutor do sono, eficiente, me induziu ao sono.
Dormi cedo, acordo cedíssimo. Pigarreio, Maria Luíza senta-se no sofá de acompanhante. Bom dia, como vamos? Indo, respondo, e peço que ela feche a janela e religue o ar refrigerado, o dia vai ser quente.
A recepção diz que o jornal no meu nome ainda não chegou, chegando, trazem aqui. Um enfermeiro se oferece para me dar banho e mudar os lençois. Sem o senhor sair da cama, nenhum problema. Não disfarço a incredulidade, ele se agita e, num quarto de hora, conclui a tarefa. Banho de panos úmidos e de boa enxugação, lençóis substituídos. É, tudo é questão de técnica.
Me distraio a rodar os canais da tevê, estaciono num programa sobre plantações, granjas e fazendas. Surpresa, eu (urbano radical) gosto. Em meio ao parto de uma égua, chega a copeira com a bandeja de café.
E a dor nas pernas reacende. Coisa de louco, opero a próstata, as pernas se rebelam.
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O auxiliar do cirurgião cumpre a promessa, estou livre para caminhar. Manda a enfermagem desconectar as bolsas de soro, diz que agora preciso beber ainda mais líquido. Me queixo das pernas, ele é incisivo: tome banho e caminhe no corredor que a dor some. Escondo que o enfermeiro me lavou, constrangido confesso que tenho vergonha de sair do quarto. A camisola de internado, a sonda, a bolsa de urina... Recebo uma lição: bobagem, você está num hospital. E uma sugestão: faça de conta que a bolsa de urina é o seu cachorrinho. O piadista busca a porta, mas para: você evacuou? Respondo que hoje não, a última vez foi ontem de manhãzinha, em casa, ao acordar para vir para cá. Muito tempo, vou então tomar um regulador do intestino. Sim, nada contra (indutor do sono, regulador do intestino, acabo dominando a linguagem), e a sonda, até quando?. O doutor responde com a mão na maçaneta, até quarta-feira, ali pelas 6 horas de quarta-feira a enfermagem retira a sonda. Me assusto, a enfermagem?, não é trabalho de médico? Aprendo que não, retirar a sonda é tarefa comezinha, sem qualquer segredo. Que bom, falo por falar, e me animo, sem sonda às 6 horas, às 9 chego em casa, às 10 talvez... A mão se afasta da maçaneta, e a notícia ruim me encara: não, só volto para casa na quinta-feira, a alta ocorre um dia depois da retirada da sonda, são necessárias 24 horas de observação. Cacilda, cinco dias de hospital? O cirurgião não falou em quatro? Ou eu entendi mal? Bem, não vem ao caso, como dizia uma ex-freira, minha amiga dos tempos da ditadura, caralho caralhinho caralhão, me fodi nessa.
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Engulo o regulador do intestino, me preparo para passear no corredor. Aí descubro que, exceto na altura da nuca, onde duas tiras permitem um laço, a camisola é aberta de alto a baixo. Passear assim, de bunda ao vento? Chamo a enfermagem, uma loura esguia me socorre colando pedaços de fita crepe até a altura das coxas. Faz mais: rasga um metro de gaze, cria uma alça para eu levar a bolsa de urina a tiracolo. Virei fashion. Posso ir agora? A esguia garante que sim, eu vou.
Vinte minutos de passeio, volto para o quarto. A recepção entregou o jornal, me ajeito na poltrona macia para lê-lo. Da primeira para a segunda página, uma cólica me obriga a escorregar para o banheiro (poderoso o tal regulador do intestino). Ergo a camisola, me abanco na privada. Me contraio um pouco, sai sangue da uretra, por fora da sonda. Não chego a me preocupar, deve ser normal.
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A nutricionista traz a novidade, as refeições não serão mais líquido-pastosas. Escolho o almoço, ela sugere que eu também defina o jantar. Sensação de estar sendo atropelado, reajo com delicadeza de doente, minha querida, não pode ser depois? Pode, pode, na hora que eu quiser. Voz de doce menina, cara de mulher contrariada. Tadinha.
Retomo o jornal. Para superar a lentidão do relógio, troco a leitura em diagonal de velho jornalista, por uma leitura minuciosa. Céus, como se escreve besteira.
Almoço, faço a digestão no corredor. Disciplinadamente. Antonia aparece. De passagem, pois tem bloco. Entrou no saite do hotel-fazenda, Artur está na dele, a mil.
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A tarde se vai, as pernas doem. Não adiantou ser disciplinado. Vou pedir repeteco do analgésico e do indutor do sono. Se dormir cedo, amanhã vejo pela tevê o resumo da primeira noite de desfile na Sapucaí.
Dia 7 – As imagens selecionadas mostram um espetáculo de respeito, mas não a ponto de empolgar quem já assistiu a ene desfiles. Os jovens, claro, os jovens e os turistas devem ter adorado (mas jovem e turista perdem fácil a cabeça).
Evacuo (segundo minha ex-mulher, médica, o verbo defecar é horrível de feio; se é horrível de feio, não uso), tomo café e banho de chuveiro, a bolsa de urina no chão, me olhando como o cão que jamais se separa do dono.
Insisto em caminhar no corredor. Guerra às pernas subversivas.
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Maria Luiza dormirá sua terceira noite aqui, resolvemos dispensar Antonia. Homenagem à sua juventude ávida de folia. Mas, por enquanto, a dispensa é só para hoje, como dizem os sábios amanhã é outro dia.
Pelas paredes escorre uma monotonia atroz.
Dia 8 – Na tevê, o resumo da segunda noite na Sapucaí. A primeira foi melhor, uma noite republicana.
Café, banho, jornal, enfermeiros, corredor, médico, nutricionista – a rotina em estado bruto. A rotina da rotina. Eu me pirulito depois de amanhã, antes do meio-dia, sou sortudo, e já estou às margens da depressão, imaginem o espírito de quem vara semanas ou meses no hospital. Ou a gente se acostuma?
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E de repente, em meio à pasmaceira, constato que as pernas não doem mais. Desistiram. Por que doíam, por que pararam de doer? Nos envie sua resposta e se candidate a um balaio de prêmios.
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O auxiliar do cirurgião confirma a retirada da sonda amanhã cedo e diz que, uma hora-uma hora e meia depois, eu devo sentir vontade de urinar. Vou urinar a intervalos curtos, o jato fraco como antes da cirurgia, que eu não me inquiete, é assim mesmo. Pede que eu urine sempre no baldinho e avise a enfermagem, para se anotarem as quantidades. E, disparo a pergunta, se eu não urinar? Bem, o médico fala manso, se eu não urinar a sonda é reposta, eu vou para casa com ela e, daqui a uma semana, volto para retirá-la. Bem feito, por que perguntei? Pergunta desnecessária, masoquista. O medo de reter a urina me arrepia, chegar em casa de sonda, o máximo da humilhação. O que dizer aos porteiros? Antes da humilhação a dor, se repuserem a sonda sem anestesia vai doer à beça. Formo a imagem de um lápis de ponta cortante me lacerando a uretra (Por que um lápis, e não uma vareta ou um prego ou uma agulha comprida? Sei lá, não tenho ideia).
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Antonia veio para dormir. Iniciativa dela, você precisa descansar, diz a Maria Luiza. Filha magnífica, canto o elogio, ela dá o troco, me chama de venerável ancião. Maria Luiza vai embora, eu e Antonia esticamos um bom papo - a vitória da Vai-Vai no desfile das escolas de samba de São Paulo, o trote na faculdade de direito, na semana que vem (os calouros terão de pedir dinheiro na rua e ela já me pede algum), os filmes em cartaz e o romance que ela está lendo, a matrícula no curso de alemão, o sexo só com preservativo (não sou louca, pai) e as artes de Artur. Pai, o Artur está muito rebelde, mal-criado, fala palavrões pras minhas amigas, não é por que tem só 12 aninhos que pode fazer isso, você precisa conversar com ele. Eu digo que sim, óbvio, o Artur deve se comportar, ser um menino educado, prometo que o chamarei às falas. A filha magnífica e eu nos damos as mãos, momento de leveza. De leveza e de curiosidade, filhota, fale, que palavrões o Artur diz pras tuas amigas?
Dia 9, quarta-feira de cinzas – Seis e meia da manhã, a enfermeira que vai retirar a sonda me acorda. Respondo ao bom dia, me ajeito na cama. Numa bandejinha de aço ela traz um pedaço de gaze e uma seringa sem agulha. Tenso, sigo a operação: a enfermeira destapa uma entrada secundária da sonda, enfia a seringa. Puxa o êmbolo, a seringa se enche de água. Puxa a seringa, derrama a água no pedaço de gaze. Essa água, ouço, depositada numa bolsinha, impedia que a sonda escapasse da uretra. Ah, é?, e eu todo esse tempo temendo que, num movimento mais brusco, a sonda se soltasse. Minha ignorância provoca um risinho sacana, com meneio de cabeça, e eu tenho uma momentosa aula: por dentro da sonda existem três vias: a que chega à bolsinha de água, a que transportava o soro que no primeiro dia irrigou a bexiga e a que expele a urina sanguinolenta para a bolsa-cachorrinho.
Uma ciência a mais para eu professorar no botequim xexelento em que bebo cerveja, mas agora vamos ao que interessa, a retirada da sonda. Vai doer, não vai doer?, a enfermeira tem mãos treinadas, a sonda vai saindo, saindo, saiu. Dor não houve, houve pequeno desconforto. E a operação foi rápida e sem maiores ruídos, no sofá Antonia continua a dormir.
Do pequeno desconforto ao conforto pleno, liberto do olho da enfermeira, que já se escafedeu, ensaio passos de dança. Ridículo. E daí?, danem-se, estou contente.
O contentamento, porém, não se sustenta, reinstala-se o receio de não urinar e ter de ir de sonda para casa.
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Aleluia, aleluia, uma hora e dez minutos depois da retirada da sonda, estou urinando. No baldinho, como menino obediente. Arde, mas pode arder, quero é que arda.
Quarenta minutos mais tarde, estou urinando. No baldinho, naturalmente. Isso, vamos arder.
Mais 20 minutos, ao baldinho. Ar-den-do, ar-den-do.
Antonia acordou e partiu, na quarta de cinzas não falta bloco nas ruas. E olha eles aí, o auxiliar do cirurgião e o cirurgião, hoje o chefe veio. Nos cumprimentamos, o cirurgião indaga como estou, ótimo, estou ótimo, a urina mais solta, o jato ainda fraco, como me preveniram, mas a urina mais solta... Então o chefe golpeia, que bom, mas vai piorar. Hein, como? Sim, por causa do edema vai piorar. Simpático (por falar em simpatia, cadê a anestesista que me paralisou as pernas?), ele explica, a piora durará dias, até que, devagarinho, à medida que o edema diminuir e a bexiga encher, o jato ganhará força.
Eles saem, eu careteio para o espelho do banheiro. Por que viver é tão complicado?
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Decido não me abater, vou piorar, vou melhorar, os doutores disseram, vale o que eles disseram. Quem me ajuda a afastar as nuvens cinzentas é Ruth, minha companheira de trabalho. Visita agradável, engrenamos um papo sobre nossa condição de pais tardios, as delícias e as dificuldades, derivamos para problemas de dinheiro e pormenores da cirurgia. Ela ouviu por aí que eu me submeteria a uma raspagem da próstata, mas para quê? Para voltar a urinar sem esforço, respondo, a próstata estufou, comprimia a bexiga e a uretra, a urina saía a prestações. Didático, dou o nome oficial da cirurgia, Ressecção Transuretral da Próstata, Ruth se assombra, foi pela uretra?, não acredito, a uretra é tão estreita. Pobre iludida, ela não sabe do que os médicos são capazes, os médicos, minha cara repórter, com seus poderes mágicos, transformam a uretra no Túnel Rebouças, numa galeria de Itaipu. Ruth ri.
Patatipatatá, eu conto que, em conseqüência da cirurgia, daqui em diante vou ejacular para a bexiga. Ruth franze as sobrancelhas, sério?, você está inventando. Banco o ofendido, eu inventando?, é seriíssimo, PORRA. Ela recomeça a rir, eu me contagio, gargalhamos até as lágrimas.
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Venceu a Beija-Flor. Somos um país de reis e rainhas.
Anoitece. Amanhã de manhã a alta, dou o último giro pelo andar. Maria Luiza chega para nossa noite de despedida do hospital. Pelo menos nesta temporada.
Dia 10 – Oito horas, estamos prontos para nos mandarmos, será que o médico demora para vir dar a alta? Nem acabo de falar, o auxiliar do cirurgião abre a porta. Me examina, tudo de acordo com o esperado, passa uma lista de recomendações para os próximos 30 dias e pede que eu leia. Eu leio: evitar sexo, café, chá preto, mate, coca-cola, bebida alcoólica, pimenta, esforço físico, ficar sentado e prender a urina por muito tempo; não sair do Rio, fora de casa usar absorvente e avisar em caso de febre ou sangramento.
Algo a esclarecer? Digo que não, o médico lembra que por uns 40 dias haverá ardência e que eu tenho de marcar a primeira revisão para a semana que vem. Nos abraçamos, ele escreve acima das recomendações o número do seu celular e do celular do cirurgião e me congratula por eu ter sobrevido aos... médicos. O rapaz tem humor.
***
Superada a parte burocrática na secretaria, pegamos o carro de Maria Luiza. Para eu não ficar sozinho, vou convalescer na casa dela. Ganas de ouvir música, ligo o rádio na MEC. Hora do noticiário: Obama vai visitar uma favela, a inflação deve diminuir no segundo semestre, o partido da deputada que recebeu dinheiro ilegal afirma que ela tem boa índole, reforma fará do Maracanã o estádio mais moderno do mundo, previsto para hoje ou amanhã um tremor de terra na costa do Japão.
Música. Variações sobre um tema de Haydn, Brahms é magistral. Sol de verão-outono, contornamos a Enseada de Botafogo, uma onda de alegria me lambe da cabeça aos pés.
Chegamos à garagem de Maria Luiza, o elevador nos espera. Subimos, ela abre o apartamento, eu entro e escancaro o janelão da sala. O trânsito, os prédios, os terraços, os jardins suspensos, as piscinas, os telhados escurecidos, os morros e a mata, a pedra soberana do Pão de Açúcar - a alegria incha, vira euforia, e eu vibro por estar inteiro e morar neste paraíso infernal.
Parabéns pelo texto - como sempre, muito bem escrito e prendendo o interesse de quem lê. Que a ardência já tenha passado e que novos textos sejam escritos.
ResponderExcluirAbraços,
Tania Pacheco.
Valeu, Tania. Como sempre, você vem em primeiro lugar. O convite para aquele vinho continua de pé. Beijosssssssssss.
ResponderExcluirNão consegui parar de ler! Fui até o final de uma cirurgia de próstata de um desconhecido! :)
ResponderExcluirParábens!
Ana.
Fala, grande Marco Antonio. Que bom saber que você superou esse desafio. Veja como terminou o meu neste cordel (comentamos certa vez no refeitório do terceiro andar o caso, lembra?) http://umblogdeconcurseiro.blogspot.com/2011/04/mais-um-cordel-peleja-do-concurseiro.html
ResponderExcluirAnônimo que se assina Ana? Como assim? Vamos lá, ponha mais detalhes na identificação.
ResponderExcluirDe qualquer modo, obrigado pelo elogio (não consegui parar de ler).
Admar, me desculpe, eu não me lembro do comentário no refeitório. Talvez por isso não tenha entendido o que você quer dizer com "veja como terminou o meu neste cordel".
ResponderExcluirEscreva mais, me ajude a lembrar.
Abraço.
Oi Marco Antônio!
ResponderExcluirNão nos conhecemos ainda, mas a Antônia divulgou seu blog. Creio que ela sabe que gosto de boa leitura... Sou a Flavia, companheira do Marcos, pai da Lusia Sader.
Adorei a resenha! Penso que você foi muito corajoso de ter ido para cirurgia num sábado de carnaval! Mas o bom é que você resolveu qualquer problema que estava lá nessa “porcaria de próstata”. Como médica fiquei feliz em ver um relato tão positivo sobre nossa classe e rede hospitalar...
Desejo uma recuperação breve e que aquela lista interminável de recomendações seja em breve, uma página rasgada!
Um grande abraço.
Flavia
Valeu, Flávia. Fico feliz em saber que, da India, onde está morando, você leu o texto. Leu e gostou. Espero tê-la como minha leitora, daqui para a frente.
ResponderExcluirUm beijo e um abraço no Marcos.
Marco Antônio,
ResponderExcluirSòmente hj li sua crônica sobre esta porcaria que é próstata( Sábia nossa querida ceiça ).Vc é um mestre na escrita mesmo, DUCA,.Espero que a interminável lista de sugestões já seja papel rasgado.Grande beijo ( o povo pode até pensar que somos gays, mas gay só é vc).
Grande Luiz. Sim, as recomendações já são passado.
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