Lentamente, como água pingando numa garrafa vazia, a pressão sobe do diafragma para o peito e me faz bocejar. Os olhos se inundam, lembro que de manhãzinha, pouco antes de acordar, tive um pesadelo.
Estico as pernas sob a mesa, o ruído do aparelho de ar refrigerado me irrita. Me levanto, vou folhear a coleção de jornais. No outro lado da redação, alguém ri alto. O mal-estar aumenta.
Uma estagiária me bate de leve no ombro, tudo bem? Não respondo, concentrado na manchete de um jornal de São Paulo. Tudo bem?, ela repete. Tudo, falo enfim, procurando mostrar simpatia. Desculpe te incomodar, ela diz, mas preciso ouvir a opinião de um colega experiente: você acha que aprendo a profissão? Bem, faço cara de velho sábio, ainda é cedo para saber, vai com calma.
Ela, meio sem jeito, agradece; eu, me sentindo cabotino, sorrio e me afasto, como se precisasse concluir uma tarefa. Subo até a cantina, tomo um refrigerante. Escurece, o dia está tranqüilo, talvez saia mais cedo.
Volto devagar para a redação, contando os degraus da escada, já acostumado à pressão no peito. Mal me sento, sou chamado ao telefone. O que você vai aprontar logo mais?, pergunta o amigo que anda meio distante. Não sei ainda, respondo. Vamos tomar um chope?, ele propõe.
Combinamos hora e local, desligamos. Sem nada de urgente para fazer, confiro no computador se há novidades. Um caso de polícia: o maquinista Antero da Silva matou a golpes de facão a mulher Daniele e o vizinho Edzé de Oliveira; ao chegar em casa, Antero os pegou bebendo caipirinha e ouvindo Roberto Carlos. A notícia não diz qual a música do crime.
Antero, Daniele, Edzé, Roberto Carlos – o que eu tenho a ver com essa turma? Chego ao chefe, informo que não estou bem, vou embora. Sem problema, ele diz, e, piscando o olho: depois me conta se é loura ou morena.
Os chefes são imbecis, penso sem nenhuma convicção, ao chamar o elevador. Pego um táxi, para o motorista imbecis são os guardas de trânsito. Fechado por uma mulher, esquinas atrás e flagrado pelo guarda ao ir à forra, ele está possesso. E ainda sobra para as mulheres. Acredite, diz, toda mulher que dirige não presta. Faz uma pausa, me olha pelo retrovisor, amacia o discurso: falo em tese, o senhor entende?
Não respondo, nem balanço a cabeça. Desço em frente ao bar em que vou encontrar o meu amigo, logo o avisto. Nos abraçamos em meio a boas risadas, sempre que nos revemos rimos de mil peripécias, encravadas na memória, há quanto séculos, canalha, canalha, há quantos séculos?
No terceiro chope, a conversa solta, a pressão no peito sumiu, o mundo parece razoável. E, trazida pelo burburinho das mesas próximas, uma saudade vaga me dá vontade de em fevereiro brincar o carnaval.
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O guarda da esquina
O fim de Kadafi (aliás, nada justifica sua execução, ele tinha de ser julgado) é uma ótima oportunidade para lembrarmos que não há ditadura boa, todas são horríveis. Todas, todas, não nos iludamos. E nem sempre o pior das tiranias é o tirano, ele até pode ser bem intencionado, o pior é o guarda da esquina. Ele e a necessidade de demonstrar autoridade.
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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)
Trégua
Enterrado o amigo querido, me despeço
da abatida viúva. Daqui três/quatro dias,
volto a freqüentar sua cama.
(abril/87)
Xeque-mate
“Socorro, socorro,
Socorro, se não eu morro.”
- Até quando esses gritos,
esse escândalo na Rua de Baixo?
- Deixa pra lá, vamos, é tua vez de jogar.
“Socorro, socorro,
socorro, se não eu morro.”
- Educação é o que falta ao povo.
- Não se preocupe, essa gente se entende
E sobrevive nos vapores do álcool.
“......................
.............................”
- É tarde, me distraí, joguei errado.
- O espírito mau se foi, ou ninguém socorreu
e quem gritava morreu.
- Não tenho saída, meu pobre rei está cercado.
(fevereiro/94)
Sapiência
Sempre tem alguém
que sabe mais que eu.
Menos? Vou pôr
anúncio no jornal.
(abril/2000)
Sapiência
Sempre tem alguém
que sabe mais que eu.
Menos? Vou pôr
anúncio no jornal.
(abril/2000)
Senhor editor, concordo inteiramente com sua posição antitiranias. A democracia sempre, a democracia com todos os defeitos. Nosso Não a qualquer ditadura.
ResponderExcluirVisitante.
Bateu aquela neura de domingo. Vontade que o tempo corra e amanhã chegue logo. Como vc mesmo diz, Editor, tão bom rever amigos, rir com eles, sem compromissos. Vou procurar os meus. Hoje é o dia perfeito.
ResponderExcluirTeresa, não me lembro de ter dito o que você diz que eu disse, mas é possível que tenha dito. É verdade, eu gosto de espairecer com os amigos. Procure, sim, os seus e aproveite.
ResponderExcluiraconselho vc a reler seu texto de hoje.
ResponderExcluirEstá certo, Teresa. Pensei que você estava se referindo a algum comentário meu em outra situação, não ao texto.
ResponderExcluirato falho. Aqui eu só faço referências ao seu texto.
ResponderExcluirClaro, claro, Teresa. Como somos amigos há 20 anos e eventualmente nos vemos pela cidade, eu me confundi. Nada grave.
ResponderExcluirMagaysísssimo, o prosema "Trégua" é do cacete.
ResponderExcluir"vontade de em fevereiro brincar o carnaval", você é carnavalesco? Eu gosto sem exagero.
Abraço do Igor Avelino Soares Matoni.
Já brinquei carnaval, Igor, mas nunca fui fanático. Hoje então procuro ficar fora da loucura.
ResponderExcluirPobre do seu "amigo querido". A vida segue mesmo.
ResponderExcluirTeresa, como você sabe, eu, além de jornalista, sou ficcionista.
ResponderExcluirComo é que pode, turma, sequer uma alusão ao texto principal, "Em fevereiro", a meu ver, primoroso. Vamos ser mais atentos.
ResponderExcluirVc tem razão,Luzia. O texto é muito bem escrito. Quem disse que a gente não presta atenção ? Como o editor mesmo diz, ele é um ficcionista. Lá tenho as minhas dúvidas mas isso não invalida nada.
ResponderExcluirNão exageremos, "Em fevereiro" é um texto assim assim.
ResponderExcluirVisitante.
Eu adorei "Em fevereiro" e o final é danado: vontade de brincar o carnaval, ou seja, vontade de romper todos os limites, de pôr pra quebrar, ulalá, Gay.
ResponderExcluirCosme, antigamente a gente precisava esperar o carnaval pra passar dos limites. Muita lança pra cheirar ! muita doideira. Agora a gente passa dos limites todos os dias sem precisar desses adereços. Ainda bem que os tempos mudaram e nós também. Ulálá, Cosme !
ResponderExcluirTeresoca, concordo com você em parte, tem gente que passa dos limites todos os dias ou quase todos os dias, como você e eu, eu vivo a mil mesmo com dor de cotovelo, mas tem gente que só põe pra quebrar em certas ocasiões como o carnaval. Na verdade eu não sei como o Gay é, falei por falar, na brincadeira.
ResponderExcluirBeijos a todos.
Também não sei como ele se comporta no dia a dia. Falo por mim. Se estiver com dor de cotovelo então... mas é assim que gosto de viver. Testando limites, o meu e o dos outros. Complicado viver, não, Cosme ? mas tem coisa melhor que viver ?
ResponderExcluirMelhor que viver, o céu. Se existisse, claro.
ResponderExcluirVisitante.
Ah, poupe-me ! quero viver o céu aqui na terra, pisando no chão. Quero ficar pra semente.
ResponderExcluirTeresíssima, você é eterna eterníssima.
ResponderExcluirAbraço do I. Matoni
e vc diz coisas tão lindas que eu até acredito que sou eterna !
ResponderExcluirVocês me emocionam...
ResponderExcluirGay, eu também me emocionei. Tanto que estou arrepiadinho.
ResponderExcluirBeijos a todos vocês.
Gosto de saber que os homens também se emocionam. Dificilmente eles se revelam assim, apesar de sentir um leve ar de picardia no editor...
ResponderExcluirO editor é inocente.
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