sábado, 18 de junho de 2011

Pela cidade


Botafogo, a enseada e o casario, em 1919
 Caminho dois quarteirões e meio na Rua Voluntários da Pátria, à procura de um endereço, me lembro de João do Rio. Em 1922, ele escreveu o seguinte: Tornou-se de nossos dirigentes e magnatas uma vaidade singular: a vaidade de Botafogo e adjacências. O resto do Rio não existe, mas paga imposto. O Rio é Botafogo, o resto é a cidade indígena, a cidade negra.
O que João do Rio escreveria se visse Botafogo cheio de edifícios de mau gosto, escritórios e clínicas, as ruas entulhadas de caminhões, ônibus e carros – estes, em frente aos colégios, em filas duplas e até triplas? Talvez nem conseguisse escrever, bloqueado pelo caos botafoguense se declararia ex-cronista e, quebrando a pena, apelaria para o velho lugar-comum: indescritível, ponto final.
Saio de Botafogo rumo a Laranjeiras, troco João do Rio por Machado de Assis. Numa de suas mais deliciosas crônicas, o Bruxo ecoa a notícia do dia: vão calçar a Rua das Laranjeiras. Alarmado, ele pede o arquivamento do projeto. E explica por quê: fora a vantagem de, em dias de chuva, se poder atravessar a rua sem enlamear os sapatos, a novidade teria consequências funestas, todas sob o disfarce do progresso.
O que Machado escreveria se visse o que restou de sua Laranjeiras, de seu Cosme Velho? Acho que não se daria ao trabalho de compor uma crônica. Cansado, piscaria o olho e resmungaria: eu não disse?
De Laranjeiras, já sem a companhia do Bruxo, que preferiu não atravessar o Rebouças, vou à Tijuca pegar um amigo na Rua dos Araújos. É uma rua pequena, entre a General Roca e a Conde de Bonfim, mas de trânsito difícil. Sem saída, por segundos vivo a alucinação de que me enganei e estou de novo em Botafogo. O amigo ri quando lhe falo dessa sensação e conta que, antigamente, a Rua dos Araújos tinha mão dupla e linha de bonde. Palavra de honra, ele diz ante minha cara de incredulidade.
Da Tijuca descemos para o Centro, aonde há muito eu não ia. Aí, aleluia, encontro boas surpresas. Várias ruas e pontos tradicionais foram remodelados e tornaram-se aconchegantes. O amigo, admirador entusiasmado do Rio de anteontem, informa que há em estudo outras ideias com o objetivo de humanizar a região.
Pois que essas ideias se concretizem. Se isso realmente acontecer, voltarei a dar minhas escapadelas por aqui, a flanar (verbozinho simpático, este!) como na época de faculdade. A FNFi ficava no Castelo, junto à Avenida Beira-Mar. Depois das aulas, eu e dois colegas saíamos a bater perna. Evitávamos a Avenida Rio Branco, insuportável, buscávamos ruelas e travessas, caminhos apaixonantes. Não raro, cruzávamos com Manuel Bandeira, morador do Centro. Um de nós declamava algum verso do velho poeta, ele sorria e seguia quieto.
Outras vezes, cada um com sua namorada – avec, se dizia então – íamos para trás do Museu de Arte Moderna ou do Monumento aos Pracinhas. Sentados à sombra, acompanhando o sol, falávamos sem parar – nós endireitaríamos o mundo; depois, o sol posto, cansados de tanta conversa, namorávamos. A violência e o medo pertenciam ao futuro – o Aterro do Flamengo, ainda com muitas áreas sem o verde de Burle Marx, era lugar seguro; e 64, apenas o ano que se aproximava.
Felizes e inocentes, namorávamos, namorávamos, namorávamos.
Bons tempos, bons tempos, bons tempos.

@@@@@

Bobagens - Jantar de aniversário na família, sento-me entre dois primos que não vejo há anos. Não demoramos a engrenar conversa e logo percebo que eles acham que eu, como jornalista, estou a par de tudo, da intimidade da presidente da República aos planos secretos da Nasa para levar o homem a Marte. Não lhes estimulo a fantasia, ponho-me mais como ouvinte. Então, em menos de dez minutos, ouço duas mentiras e quatro piadas infames. Quanta bobagem vou ouvir até a sobremesa? 

@@@@@


FHC - Independentemente de posição política, deve-se ler a entrevista de Fernando Henrique Cardoso, que está completando 80 anos, ao Globo de hoje. Eu não sou PSDB ou fernandista, mas recomendo com veemência.

@@@@@

Mulher ao volante - Finalmente aconteceu: em mais um capítulo das revoltas nos países árabes, mulheres da Arábia Saudita desobedeceram à proibição de dirigir. Aqui cabe, como dizia Nelson Rodrigues, proclamarmos o óbvio: se elas saíram às ruas dirigindo é porque sabem dirigir, e, se sabem dirigir, é porque aprenderam a dirigir. Ou seja: mesmo na ditadura mais fechada, é impossível sufocar completamente o indivíduo. Viva o desejo de liberdade.

37 comentários:

  1. O que João do Rio escreveria?

    Continuaria flanando, observando e amando o mundo encantador das ruas:
    "Há suor humano na argamassa do seu calçamento."
    "Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos." (A rua)

    Quanto ao Bruxo

    Subiria, todos os domingos, o Cerro Corá para comer feijoada, tomar caipirinha e ouvir um sambinha com Magay.

    Homenagem

    As crônicas de hoje são tristes.


    Bobagem

    O aniversário de FHC e tudo o que ele diz.

    Mulher ao volante

    Só algumas.

    Anônimo que é anônimo

    ResponderExcluir
  2. Gay, pelo segundo sábado seguido você menciona o Manuel Bandeira. Dos brasileiros ele é o teu poeta preferido? Eu adoro.
    Beijo.

    ResponderExcluir
  3. Anônimo que é anônimo18 de junho de 2011 às 13:12

    Você tem bom gosto literário.

    TRUCIDARAM O RIO

    Prendei o rio
    Maltratai o rio
    Trucidai o rio
    A água não morre
    A água que é feita
    de gotas inermes
    Que um dia serão
    Maiores que o rio
    Grandes como o oceano
    Fortes como os gelos
    Os gelos polares
    Que tudo arrebentam.
    (Manuel Bandeira)

    ResponderExcluir
  4. Neste sábado lindo de finzinho de outono, voltei anos atrás e passeei com vc pelas ruas do Cosme Velho lembrando de uma história que meu avô contava. Ele morou ali pelas redondezas do Largo do Boticário (que abandono !) onde nasceu o Rio Carioca e desembocava na Pça José de Alencar. Toda manhã ele via passar Machado de Assis, num terno de linho impecavelmente branco, chapéu e bengala que ele rodopiava pra fazer charme. A casa do meu avô não existe mais e o pobre Rio Carioca deve estar por aí solapado debaixo do cimento.

    ResponderExcluir
  5. Cosme, quem não gosta de Manuel Bandeira? Acho difícil encontrar alguém. Mas, dos nossos poetas contemporâneos, não é o meu preferido. Em primeiro lugar vêm Drummond e João Cabral, às vezes este um pouco na frente daquele. E também gosto muito do Vinícius, que tem coisas lindas.
    Voltando ao Bandeira, assim como no futebol o América é o segundo time de quase todo mundo, na poesia ele é querido pela grande maioria dos leitores.

    ResponderExcluir
  6. Sei que vão cair em cima mas não acho a menor graça no Drummond. É aquela coisa que se é obrigado a gostar. Já o Vinicius e por que não o poeta Chico Buarque ?
    Quem te disse que o América é o 2o time de quase todo mundo ? Esqueceu do Bangu.

    ResponderExcluir
  7. Quero meter minha colher. E o Ferreira Gullar? Não leio poesia todo dia mas o que eu li dele eu gostei.

    ResponderExcluir
  8. Que é isso, Teresa, o América é muito mais querido que o Bangu.

    Luzia: eu gosto do Ferreira Gullar, mas -continuando com as metáforas futebolísticas, no estilo Lula - ele joga na seleção sem porém ser titular, fica no banco de reservas para entrar no segundo tempo. Agora, o "Poema Sujo" é maravilhoso.

    ResponderExcluir
  9. Conheço quase nada do Ferreira Gullar, mas depois do comentário da Luzia eu e Leandro descobrimos na internert um poema lindo dele. Vejam:
    Coito
    Todos os movimentos
    do amor
    são noturnos
    mesmo quando praticados à luz do dia

    Vem de ti o sinal
    no cheiro ou no tato
    que faz acordar o bicho
    em seu fosso
    na treva, lento,
    se desenrola
    e desliza
    em direção a teu sorriso

    Hipnotiza-te
    com seu guizo
    envolve-te
    em seus aneis
    corredios
    beija-te
    a boca em flor
    e por baixo
    com seu esporão
    te fende te fode

    e se fundem
    no gozo
    depois
    desenfia-se de ti

    a teu lado
    na cama
    recupero minha forma usual.

    Não é lindo?

    ResponderExcluir
  10. Magaysíssimo. Poesia não é minha praia, mesmo assim dou meu alô, de passagem pra não atrapalhar, se fosse teatro eu poderia falar, já disse que sou plateia.
    Mas mesmo não sendo minha praia, gostei muito desse poema que o Cosme transcreveu.
    Boa noite do Igor Matoni.

    ResponderExcluir
  11. Cosme, obrigado por passar o poema do Gullar, muito bonito. Quando puder leia o poema sujo que o Magay diz que é maravilhoso. Eu tb acho.

    ResponderExcluir
  12. Lindo, Cosme. Todas as formas de amor valem a pena. O outro, sugerido pelo MA, é muito bonito tbém. A poesia é uma das formas mais difíceis de se escrever, acho eu. E quando vai assim na mosca, bate fundo.

    ResponderExcluir
  13. Assim que encontrar o Poema Sujo eu leio. Leandro e eu já estamos procurando.

    Vejam a força da poesia. Desde ontem, em vez de comentários belicosos, trocamos informações amigáveis.
    Beijo a todos.

    ResponderExcluir
  14. Não resisti e ai vai um pouco da Cecilia Meireles nesse tempo de doçura total.


    Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.

    Cecília Meireles

    ResponderExcluir
  15. Eu não quero ficar fora desse "tempo de doçura total" (obrigado, Teresa). Por isso passo para vocês o Soneto da Fidelidade, de Vinícius de Moraes.
    Ana Gam, terminando o domingo com emoção.

    De tudo, ao meu amor serei atento
    Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
    Que mesmo em face do maior encanto
    Dele se encante mais meu pensamento

    Quero vivê-lo em cada vão momento
    E em seu louvor hei de espalhar meu canto
    E rir meu riso e derramar meu pranto
    Ao seu pesar ou seu contentamento

    E assim quando mais tarde me procure
    Quem sabe a morte, angústia de quem vive
    Quem sabe a solidão, fim de quem ama

    Eu possa me dizer do amor (que tive):
    Que não seja imortal, posto que é chama
    Mas que seja infinito enquanto dure

    ResponderExcluir
  16. Pra vc se incorporar a nós, Igor, recomendo a peça A CRÕNICA DA CASA ASSASSINADA, do escritor Lucio Cardoso. Vale ler o livro antes.

    ResponderExcluir
  17. Vivendo no Anoni Mato19 de junho de 2011 às 20:00

    E para esquecer o amargochicória que todo final de domingo tem

    Bundamel Bundalis Bundacor Bundamor

    Bundamel Bundalis Bundacor Bundamor
    bundalei bundalor bundanil bundapão
    bunda de mil versões, pluribunda unibunda
    bunda em flor, bunda em al
    bunda lunar e sol
    bundarrabil
    Bunda maga e plural, bunda além do irreal
    arquibunda selada em pauta de hermetismo
    opalescente bun
    incandescente bun
    meigo favo escondido em tufos tenebrosos
    a que não chega o enxofre da lascívia
    e onde
    a global palidez de zonas hiperbóreas
    concentra a música incessante
    do girabundo cósmico.
    Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
    bunda mutante/renovante
    que ao número acrescenta uma nova harmonia.
    Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
    o arco de triunfo, a ponte de suspiros
    a torre de suicídio, a morte do Arpoador
    bunditálix, bundífoda
    bundamor bundamor bundamor bundamor.

    Carlos Drummond de Andrade

    Beijo,
    Chicória

    ResponderExcluir
  18. bundamor bundamor bundamor bundamor, que maravilha, eu já tinha ouvido falar da poesia erótica do Drummond mas nunca li. Agora vou ler muito, sem esquecer que tenho de ler o poema sujo do Gullar.

    ResponderExcluir
  19. Valeu Teresa, a peça eu conheço, o livro não. Pra ser sincero, não leio muito.
    Sobre essa poesia da bunda, não tenho nada a dizer por enquanto. Não é muita bunda? Vou ler mais.
    Abraço do Igor Matoni.

    ResponderExcluir
  20. Conheci o Lucio Cardoso. Introspectivo, atormentado. Se não me engano esse livro virou filme também. Ainda não vi a peça mas sei que ela está aqui no Rio.
    Quanto a esse poema do Drummond ... sei lá, já li melhores.

    ResponderExcluir
  21. Gente, me perdoem mas hoje tou de coração mole e com saudade do meu amor. Só mais essa.


    Basta-me um pequeno gesto,
    feito de longe e de leve,
    para que venhas comigo
    e eu para sempre te leve...

    Cecília Meireles

    ResponderExcluir
  22. Já começamos a nos sujar com o poema do Ferreira Gullar. Leandro está amando, eu estou adorando. Bom demais.
    Beijos poéticos.

    ResponderExcluir
  23. Pelo visto vamos entrar a semana soltando o nosso lado poético.

    ResponderExcluir
  24. Depende, nos momentos de luta pela vida é bom esconder o nosso lado poético porque ele atrapalha, infelizmentew. E esses momentos são os mais comuns.

    O entusiasmo do Cosme pelo Poema Sujo está me contagiando. Eu ainda não li, vou ler.
    Ana Gam, amanhecendo.

    ResponderExcluir
  25. FHC é um estadista, MA. A história vai comprovar isso mais tarde. A entrevista dele é de um homem lúcido, coerente com suas idéias. Não sou PSDB nem filiada a partido algum mas sei apreciar os homens que têm algo pra dizer e que, com o poder na mão, fizeram alguma coisa pelo nosso país.

    ResponderExcluir
  26. Quando eu disse que poesia não é minha praia, estava falando da poesia de livro, poesia escrita, ficou claro isso? É importante ficar claro porque momento poético nem sempre tem a ver com esse tipo de poesia, e como todo mundo eu curto os momentos poéticos.

    Teresa, será que o FHC é mesmo um estadista? Tenho minhas dúvidas.
    Abraço do Igor Matoni.

    ResponderExcluir
  27. Terminamos de ler o Poema Sujo ali pelas oito e meia e então grávidos de poesia começamos um amor com tanto prazer que durou quase uma hora. Agora vamos fumar um cigarro caseiro e depois dormir abraçados, obrigado Ferreira Gullar. Nos próximos dias vamos te reler.
    Beijos meus e de Leandro.

    ResponderExcluir
  28. Estava ensaiando uma resposta pro Igor, um misto de estadista com poesia, quando me deparo com esse tratado de amor do Cosme ! Tudo que se disser nessa noite fica pequeno frente ao que li acima. Posia é isso, Igor.

    ResponderExcluir
  29. Cosme, se eu ficasse assim ~tão inspirada lendo FG eu juro que não largava o livro, varava a noite embalada pelo cigarrinho caseiro !

    ResponderExcluir
  30. Diferentaço esse Blog!!! Valeu o espaço que estamos ganhando!!!
    Abc,
    Victor

    ResponderExcluir
  31. bem maneiro também! Todo mundo conversa por aqui e desse jeito é legal. Cosme, muito prazer e parabéns pela sua alegria de ser homosexual bem resolvido.
    Marco, vc é do nosso metiê? É porque sou maquiador e pretendo promover um desfile aqui no meu bairro. Gostaria muito que viesse. Tenho vários amigos blogueiros que trabalham em rádios e revistas.
    Abc,
    Victor

    ResponderExcluir
  32. Victor, seja bem-vindo.
    Quando você diz "... o espaço que estamos ganhando", você se refere a quem?
    Outra pergunta: qual é o teu bairro e a tua cidade?
    Não, não sou do teu metiê.
    Abraço.

    ResponderExcluir
  33. Boa noite, Marco
    Obrigado pelas boas vindas!!! O espaço que me refiro é aqui nesse Blog. Cosme faz parte do meu grupo, é um professor pelo que já pude constatar e vive um bom relacionamento com seu parceiro. As pessoas respeitaram sua escolha e ninguém o excluiu por ser homossexual.
    Moro no Rocha, fica próximo de Triagem e do Riachuelo. Vc conhece? Tenho um salão de beleza junto com minha irmã, estamos montando uma outra lojinha de produtos para cabeleireiros. A inauguração será na primeira quinzena de julho. Vamos fazer um desfile e um churrascão. Gostaria que vc participasse.
    Abc,
    Victor

    ResponderExcluir
  34. Esse blog está ganhando terreno e conquistando novas amizades ! Parabéns !

    ResponderExcluir
  35. Victor, me mande o convite para a inauguração da lojinha, com endereço, hora etc. Se puder, apareço.
    Abraço.

    ResponderExcluir