sábado, 31 de dezembro de 2011

sábado, 24 de dezembro de 2011

sábado, 17 de dezembro de 2011

Kim

De acordo com a decisão de, neste mês, me manter em meio recesso, alimentando o BP com postagens rápidas, sábado passado pus três imagens de uma obra de arte da arquitetura sacra da Idade Média em Paris, a Sainte Chapelle. Hoje, ofereço três imagens de uma obra de arte contemporânea (a terceira imagem eu já postei no fim de julho, mas vale a repetição). Com vocês, Kim Novak, deusa de minha adolescência e juventude. MA RA VI LHO SA. E, antes que feministas radicais me apedrejem, proclamo: exibir KN pode até ser machismo, mas é sobretudo amor ao belo.
Amigos e amigas, apreciem sem questionamentos. 





sábado, 10 de dezembro de 2011

Sainte Chapelle

Para começar, um brevíssimo comentário sobre Sócrates, que se foi domingo passado, dia 4, deixando tristíssimos os fãs do futebol-arte: que cracaço!!!.

Agora, continuando com as postagens rápidas do meio recesso deste dezembro, presenteio vocês com três fotos da Sainte Chapelle - uma das inúmeras belezas escondidas de Paris –, tiradas por minha amiga Enia Mittelman. Vocês sabem, ir a Paris sabendo da existência da Sainte Chapelle e não visitá-la é pecado capital, sem qualquer possibilidade de perdão. Portanto, não relaxem.




sábado, 3 de dezembro de 2011

Meio recesso

    Amigos, amigas. Neste mês de dezembro, o BP estará em meio recesso. Descansar também é preciso. Continuarei a postar aos sábados, mas serão postagens rápidas, quase um oi, tudo bem? Em janeiro, volto a todo vapor. Abraço geral.

    Terminando por hoje, atendo ao pedido da Célia Castro: Pra dizer adeus, de Edu Lobo e Torquato Neto. Em duas versões, pra vocês se deliciarem em dobro.





sábado, 26 de novembro de 2011

Dalton

Eu tinha 6/7 anos, morava em Curitiba, na Rua Marechal Floriano (uma das mais conhecidas da cidade), defronte ao clube dos cabos da PM (ou algo assim) e costumava brincar com um menino de minha idade, José, que vivia numa mansão a meia quadra de minha casa. Mansão com bom quintal, era lá que nos esbaldávamos. José, filho temporão, tinha três irmãos já adultos, um rapaz sem o braço esquerdo (acho que era o esquerdo), perdido, se não me engano, na serraria do pai (com um braço só ele dirigia e jogava futebol) e duas moças, uma de cabelos claros, a outra de cabelos castanhos. Esta namorava um sujeito seriíssimo, de óculos e sempre de terno (azul-marinho ou preto) e gravata. De vez em quando o cara perdia um pouco do ar compenetrado e, em meio a um comentário qualquer, passava a mão na cabeça da gente.
Minha família se mudou para outro bairro, não tão perto da mansão de José, deixei de vê-lo. Fomos nos reencontrar anos depois, já adolescentes-quase adultos, e emendamos um papo comprido. Lembrança daqui-lembrança dali, e aquele cara de óculos, terno e gravata que namorava tua irmã? José soltou uma boa risada, pois ele casou com minha irmã, e você sabe quem é ele?

Ali pelos anos 70, numa de minhas idas a Curitiba, resolvi entrevistar Dalton Trevisan. Eu sabia que ele não dava entrevistas, mas tinha duas armas para dobrá-lo. Procurei-o na empresa da família, as tradicionais Lojas Trevisan (Lojas ou Casas?), e me apresentei: jornalista no Rio, com algumas incursões na área cultural, havia sido criado – a primeira arma – em Curitiba, lera quase todos os seus livros, conhecia bem os cenários... Ele, sem grosseria, me disse que não dava entrevistas, por favor...
Sacando então a segunda arma, muito mais poderosa que a primeira, lhe contei, sem os detalhes aqui necessários, a história que abre esta crônica. Dalton sorriu, que interessante, disse, o menino que brincava com o José era você, parece Borges. Senti uma ponta de orgulho, personagem borgeano, e, certo de que vencera a parada, fiz menção de puxar a caneta e o bloco de notas. Aí, de novo sem grosseria, o mestre repetiu que não dava entrevistas. E, me despachando, disse que falaria de mim ao cunhado José, como é mesmo o teu nome?
Saí triste, caminhei por ruas e praças palmilhadas pelo Vampiro de Curitiba. Me reanimou a ideia de que aquela havia sido apenas a primeira tentativa, um dia eu ainda entrevistaria Dalton Trevisan. Esperança que, transcorridos tantos anos, em certos momentos renasce.

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Agilidade
Caminhava cedo no Aterro, vi um mendigo se exercitando na grama. Fez uma série de abdominais e deu cinco ou seis cambalhotas seguidas. Agilíssimo. O inusitado é que ele cambalhotava para trás. Seria a expressão (inconsciente) do que lhe acontecera na vida?

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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)


Fazendo
Carta se data
Barata se mata
Grão se cata.
Ideologia se prega
Imposto se sonega
Embrulho se carrega

E a poesia? Poesia se faz
Mas sem rima fácil, Barrabás
(abril/87)

Total
No mundo
há de tudo.
E em tudo,
de tudo.
Nada sobra,
sobra nada.
(janeiro/97)

Trocaletra
Não gagueje. Qual seu adversário?
O elitismo ou o etilismo?
(novembro/02)

sábado, 19 de novembro de 2011

Grande Otelo, Macunaíma

Nos anos 60 (bota tempo nisso), passei a acompanhar PG, colega de redação nas idas a um barzinho da Avenida Princesa Isabel (divisa de Copacabana e Leme), ponto de jornalistas, mulheres (a maioria, mulatas) que trabalhavam em shows de boate e um ou outro ator (e atriz) de algum nome. Entre esses, o de maior expressão era Grande Otelo, que tinha vivido o auge da carreira no antigo cassino da Urca e nas chanchadas de Atlântida, em dupla com Oscarito.
Cupincha de PG, ele costumava sentar-se à nossa mesa. Sóbrio, tinha boa conversa. Bêbado, ficava chato ou agressivo. Certa feita, porém, embora de pileque, apareceu doce e alegre. O fato, contou, era que Joaquim Pedro de Andrade ia filmar Macunaíma, o livro de Mário de Andrade, e o chamara para viver o herói sem nenhum caráter. Estava por demais envaidecido, não escondeu, afinal, ser dirigido por Joaquim, um dos expoentes do Cinema Novo, mostrava que não fora esquecido. Havia no entanto um problema, confidenciou, que precisava ser resolvido logo: ele não conhecia o livro e era imprescindível lê-lo.
“Eu tenho”, me adiantei, “te empresto”. Grande Otelo, o olhar iluminado, me apertou o braço, “sério, você me empresta”? Sim, confirmei, e o aperto no braço aumentou. Trocamos tapinhas amigáveis, combinamos quando eu lhe entregaria o livro. Pouco depois ele foi embora, PG bateu firme, como se Grande Otelo fosse seu desafeto: “Babaca, otário, você vai trazer o livro, o crioulo vai te devolver no dia 30 de fevereiro, esperto ele, por que não vai a uma livraria e compra?” Tomou dois goles, mudou o discurso: “Você não percebeu que o cara está bêbado?, aposto que essa história de filme com o Joaquim Pedro é lorota, lorota de bêbado, de ator que já morreu e não se conforma, você vai perder o livro por nada.” Dei de ombros, “dane-se, vou emprestar e pronto, prometi, vou cumprir.”
Se Grande Otelo leu Macunaíma, não sei. Sei é que me devolveu o livro. E, como todos vocês, sei também que ele brilhou no filme, grande filme do talentoso Joaquim Pedro de Andrade. 

***

Já que falei no filme de Joaquim Pedro, não posso esquecer de citar Paulo José, que fez o herói sem nenhum caráter em sua fase branca. Tendo começado como galã, Paulo José foi se firmando, até se tornar um dos nossos bons atores. Em Macunaíma, ele já se mostra afiado, pronto para batalhas maduras.

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O cão e sua dona
Gente na rua recolhendo - a mão metida em saquinhos plásticos - fezes de cachorro é comum. Espantoso é o que vi dias atrás: uma mulher limpava com um pedaço de papel higiênico (de boa marca, imagino) o fiote do seu querido cão. Ela obesa, cilíndrica, ele pequeno e fino; ela curvada, a bundarra para o sol, os dedos na futucação, ele compenetrado, senhor da calçada. Realmente, não há limites para o grotesco.

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A vaia
      Ontem no Palácio do Planalto, na emocionante cerimônia de assinatura da lei que criou a Comissão da Verdade, que vai apurar a violação de direitos humanos durante a ditadura, houve momentos de aplausos entusiasmados. Só os três comandantes militares se mantiveram impassíveis. Como se estivessem sendo vaiados. E estavam, foi uma vaia interna. Tadinhos...

sábado, 12 de novembro de 2011

Duas historinhas quase sem sexo

Reis de Roma
Tínhamos nos visto três vezes no boteco da esquina, os dois calados a esvaziar uma garrafa de cerveja, eu numa ponta do balcão, ele na outra. Pálido, magro, de óculos e rabo de cavalo. Na quarta vez, as pontas do balcão ocupadas, nos ajeitamos no meio, lado a lado. E, lá pelas tantas, não me lembro qual o assunto, começamos a conversar. Me lembro é que de repente, e também não sei como, o papo enveredou para os impérios do mundo. O império americano, o inglês, o austro-húngaro – sem nada combinado, deslizamos nessa ordem inversa, de hoje para ontem, de ontem para anteontem.
Mais cerveja nos copos, de anteontem para eras remotíssimas, o cara conhecia História, passamos pelos impérios de Carlos Magno e Alexandre da Macedônia, acho que fizemos ligeiras escalas em potências do velho Oriente, e enfim aportamos em Roma. A Roma Antiga, dos Patrícios e plebeus, do Coliseu e as termas, dos banquetes e os bacanais, a metrópole e as províncias – o Poder Romano, presente em quase todo o mundo então conhecido, nos arrebatava, falávamos pelo cotovelos, vamos tomar mais uma?
Tomamos bem mais que o habitual. Mas tudo acaba (até o Império Romano acabou), chegou a hora de irmos embora. Pagamos a conta e, enquanto, no pilequinho, trocávamos um longo abraço, perguntei ao meu recente amigo como se chamava.
Ele, na inocência: - César. E você?
Eu, distraído: - Marco Antonio.
Levou um tempinho, dois ou três segundos, para engrenarmos espalhafatosa risada.
- Será possível? – falei.
- Caramba – ele atônito, como eu. – É isso, somos os reis de Roma.
- De Roma – emendei – e da Cleópatra, nós dois...
-... comemos ela e, se ela estivesse aqui...,
- ... comíamos de novo.
- Sim, sim, na santa paz.
- Na santa paz, claro.
Rimos outro tanto, bem cafajestes, e cada um tomou seu rumo.


Milagre, milagre
Anoitecia, ele sentiu pontadas no ouvido esquerdo. Com medo de as pontadas virarem dor, e a dor não deixá-lo dormir, foi à emergência do Miguel Couto. A médica que o atendeu diagnosticou otite e receitou um antiinflamatório. Dormiu sem dor mas, na manhã seguinte, acordou surdo.
Passaram-se dois dias, a surdez não regrediu. Ele bateu então no consultório de um otorrino em Copacabana, um bambambã, recomendado por uma amiga médica. Conversa, exame, audiometria, e a má notícia: o ouvido interno (foi essa a expressão usada pelo otorrino, ouvido interno) de repente parara de receber sangue, o que havia causado um enfarte, uma isquemia, e, com a isquemia, a surdez. O doutor fez uma careta e desferiu o segundo golpe: a chance de recuperação é de 50 por cento e não adianta você se angustiar, se houver recuperação será demorada. Marcou nova consulta para dali a 15 dias, quando repetiria a audiometria, e esticou a mão.
Não adiantava se angustiar, no entanto ele se angustiou. E três dias depois a angústia cresceu, a surdez alcançara também o ouvido direito. Com súbito medo do otorrino que o atendera, resolveu procurar outro. Foi a uma policlínica em Botafogo, acabou nas mãos de um médico quase adolescente, que poderia ser filho do mestre de Copacabana. Suspirou derrotado, estou frito, pensou, esse fedelho... Nem falou dos antecedentes, a pane no ouvido esquerdo, deixou-se examinar feito um boneco.
Meu amigo, o fedelho foi rápido, não é nada grave, apenas secreção, assim que a secreção se escoar, pode levar dias, sua audição se normalizará. Achou o diagnóstico paupérrimo, de charlatão. Tentou sorrir, não conseguiu, a vontade era esmurrar o medicozinho. Saiu sem se despedir.
Irritação e desespero, voltava ou não ao bambambã? Sim, voltaria, fazer o quê?, não, não voltaria, por que ele?, no Rio havia carradas de otorrinos. Sim-não, não-sim, indeciso, cultivou a ideia de se acostumar à surdez, afinal, tem tanta gente que não ouve e vive bem.
E, no tranco, a vida continuou. Surda. Até que uma madrugada ele acordou com os gemidos do casal vizinho, milagre, milagre, estou ouvindo. Aos gemidos juntou-se a voz do fedelho, assim que a secreção se escoar...
Pulou da cama, o casal vizinho entrava no paraíso, enveredou para o banheiro, há quanto tempo não se masturbava de madrugada?, mas, no meio do corredor, levado por estranha força, desviou para a sala. Ligou o rádio, caiu extasiado na poltrona: no ar, Variações sobre um tema de Haydn. Esqueceu o ateísmo de décadas, rezou pela alma de Johannes Brahms.



sábado, 5 de novembro de 2011

Oito bocas, um assunto

Você sabe, o problema do casamento é a convivência, o dia a dia.
Todo mundo diz isso, mas é claro, deve haver exceções.
Será?
Você e a Bia, por exemplo, quantos anos de casados?
Vinte e quatro.
Vinte e quatro anos, um bom tempo, e vocês vivem bem, vocês transmitem...
... o que, transmitimos o quê?
Sei lá, vocês...
Nós, nada, não seja bobo. Vou te fazer uma confidência...


E daí, morena, na batalha?
Como sempre. O que que tu manda?
Vamos nos amassar?
Por que não?
Indo ao ponto: quanto você...?
Que tipo de serviço?
O que pintar.
Não gosto de tratar preço aqui fora. Vamos entrar?
Em que hotel? Esse ali ou aquele da esquina?
O da esquina. A gente entra junto ou tu quer que eu vá primeiro?


De novo, cara, você acha que sou otária?
Por favor, não perca a classe. Da última vez você prometeu não repetir o piti.
Dane-se a classe, agora a cada quinze dias você vai a Beagá e quer que eu...
Acredite, amor, é o trabalho. Fui escalado pra fiscalizar a filial de Minas,
Filial de Minas, filial de Minas...
não posso fazer nada.
... não sou burra, essa filial de Minas tem peito e...
Chega, vou desligar.
Alô, alô, covarde!


Já te disse, eu também quero, mas tenho medo.
Boba, medo de quê?
Os velhos lá embaixo, e se de repente alguém sobe pra cá?
Que nada, estão jogando pôquer, quando jogam pôquer eles esquecem da gente.
Podiam esquecer sempre. Chatonildos.
Vamos, mostra.
Mostro, mas você fica aí. Só olhar, não vale passar a mão em mim.
Juro, só olho.
Jurou, tem de cumprir. Fique de costas e conte até 30. No 30 você vira pra mim.
Até 30? É muito.
Ou até 30 ou não mostro.
Tá certo. 1-2-3..........7-8-9..........12-13-14..........


 18-19-20..........23-24-25..........28-29-30, vou olhar, posso?
Pode.
Uau. Você é a primeira mulher que eu vejo assim.
Nem tua mãe?
Ah, ela não conta.
Nem mãe nem pai. Eu também já vi meu pai.
E a internet também não conta. Você é a primeira mulher que eu vejo assim ao vivo.
Gostou?
Nunca vou esquecer.
Agora chega, é a tua vez. Mostra. Conto até quanto?
Não precisa contar, olha. Olha logo.
Bonito.
Quer pegar?


Oi, amor, chegou bem?
Cheguei, amor, o voo foi tranquilo.
Me perdoa?
Perdoar o quê?
Você sabe, o piti, a ciumeira.
Tudo bem, mas não repita, promete?
Prometo. E você está fazendo o quê?
Vendo televisão, fazendo hora pro jantar.
E depois do jantar, vai aonde?
Em parte alguma. Janto no hotel mesmo e subo pro quarto. TV até a hora de dormir.
E vai pensar em mim?
Claro, amor, eu sempre penso em você.
Pense bastante... daquele jeito.
Diga, eu gosto quando você diz.
Fazendo teatrinho. Pense em mim fazendo teatrinho.
Diz mais.
Você faz aí, eu faço aqui. Um teatrinho bem gostoso, combinado?


Que tal, gostou?
Gostei. O hotel é ainda mais xexelento do que eu imaginava. Nota dez.
Dez pra você também, você foi perfeita. Lá fora e aqui dentro, na hora agá.
Não fui não. Aquele papo de não tratar o preço na calçada soou falso.
Você acha?
Claro, a profissional de verdade acerta a grana antes de entrar no hotel.
É, deve ser.
Vacilei. Da próxima vez corrijo essa falha.
Falou. Você dá o preço, eu pago sem discutir.
Mas, mesmo com o vacilo, valeu...
Que bom.
... estou me sentindo a piranha, bem como eu queria.
Parabéns.
Vamos lá em casa tomar um vinho pra comemorar.


... uma confidência que jamais fiz pra qualquer um dos meus amigos.
Caramba, que privilégio o meu.
Pois é, então ouça: eu não como a Bia há uns dez anos.
Não acredito.
Acredite, é a pura verdade.
E você tem outra?
Várias, tenho várias. E não deixo nem uma na mão.
Haja energia.
Energia não me falta, mas da Bia enjoei. Dez anos, faz dez anos que não como ela.
Bem, com todo respeito, ela é uma mulher interessante, alguém deve comer.
É, alguém deve comer. Que ela e quem come ela tenham muito prazer. Amém.

sábado, 29 de outubro de 2011

O relógio

Depois de quatro dias de trabalho intenso em São Paulo, com palestras e reuniões até altas horas, no sábado cedo o executivo voltou para o Rio e encontrou a mulher na maior depressão.
- Péssima notícia, meu bem, prepare-se.
- O que houve? - ele já com cara de infeliz.
- Essa noite deu ladrão aqui em casa. Perdemos as jóias.
- Mas como?
- Eu estava dormindo, não percebi nada. Você sabe como eu durmo. E, mesmo que tivesse acordado, me fingiria de morta, não sou boba.
- Avisou a polícia?
- E adianta?
- Claro, temos de dar queixa.
- Não, pelo amor de Deus, você sempre diz que a polícia é inoperante e venal.
- E por causa disso a gente não se mexe? Eu falo em tese, ora, há muito policial honesto.
- Primeira vez que te vejo falar assim.
- De pressa, se arrume, vamos à delegacia.
- Aquele ambiente horroroso.
- Como você sabe?
- Por acaso, não leio jornal, não vejo televisão?
A contragosto, a mulher relacionou as jóias roubadas, mudou de roupa e acompanhou o marido. Foram atendidos com presteza e cavalherismo.
- Viu só? - o marido comentou na volta para casa. - Você e seus preconceitos.
- Pura sorte.
A sorte mesmo chegou na segunda-feira. O delegado os chamou, o ladrão e as jóias haviam sido localizados. A mulher chiou:
- Voltar lá  é demais, vá você sozinho.
-  Não tem sentido - o marido argumentou - você é que conhece bem as jóias.
O delegado os recebeu quase com fidalguia e começou a mostrar o material apreendido - uma pulseira de ouro e uma de prata, quatro pares de brinco, um anel de brilhante, um colar e uma corrente, um relógio de pulso masculino...
- Esse não - o marido falou - esse relógio não é meu.
É, não é, a mulher reclamou do calor, por que delegacia não tem ar refrigerado?, daqui a pouco eu desmaio. Como o executivo insistisse, não, o relógio não era seu, o delegado mandou buscar o ladrão na carceragem.
O sujeito - magrinho, desdentado, olhar de viés - não vacilou, sim senhor, levara o relógio, com as jóias ali expostas, do apartamento tal, edifício tal, Rua Fulana - em resumo, o endereço do casal queixoso.
- Não é possível - o marido, firme - você está enganado.
- Desculpe, doutor - o ladrão, convicto - mas tenho ótima memória. O relógio estava em cima do seu criado-mudo e o senhor dormia de cabeça coberta e roncava feito um, um...
- Eu dormia de cabeça coberta e roncava?
- Não leve a mal, doutor, cada um tem seu jeito de dormir. E roncar, até reis roncam.
Não tive mais notícias da mulher. Quanto ao ladrão, foi testemunha do marido no processo de divórcio.

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Apesar dos pesares...
O Reino Unido decidiu que, a partir de agora, o trono inglês será ocupado sempre pelo filho mais velho do monarca morto, mesmo que este filho seja mulher, ou seja, a princesa não mais cederá o lugar a um irmão.
E, na Tunísia, o novo governo reafirmou o respeito aos direitos humanos e prometeu que as mulheres não serão obrigadas a usar o véu islâmico.
Apesar dos pesares, o mundo melhora um pouquinho.

***
No Brasil, a presidente Dilma Roussef sancionará duas leis importantes: a da criação da Comissão da Verdade, que investigará os excessos cometidos pelos donos do Poder contra os cidadãos, em particular os crimes do tempo da ditadura fardada; e a que, ao fim de prazos razoáveis, abre documentos sigilosos de Estado para o exame de qualquer interessado.
      Apesar dos pesares, o país melhora um pouquinho.

sábado, 22 de outubro de 2011

Em fevereiro

Lentamente, como água pingando numa garrafa vazia, a pressão sobe do diafragma para o peito e me faz bocejar. Os olhos se inundam, lembro que de manhãzinha, pouco antes de acordar, tive um pesadelo.
Estico as pernas sob a mesa, o ruído do aparelho de ar refrigerado me irrita. Me levanto, vou folhear a coleção de jornais.  No outro lado da redação, alguém ri alto. O mal-estar aumenta.
Uma estagiária me bate de leve no ombro, tudo bem? Não respondo, concentrado na manchete de um jornal de São Paulo. Tudo bem?, ela repete. Tudo, falo enfim, procurando mostrar simpatia. Desculpe te incomodar, ela diz, mas preciso ouvir a opinião de um colega experiente: você acha que aprendo a profissão? Bem, faço cara de velho sábio, ainda é cedo para saber, vai com calma.
Ela, meio sem jeito, agradece; eu, me sentindo cabotino, sorrio e me afasto, como se precisasse concluir uma tarefa. Subo até a cantina, tomo um refrigerante. Escurece, o dia está tranqüilo, talvez saia mais cedo.
Volto devagar para a redação, contando os degraus da escada, já acostumado à pressão no peito. Mal me sento, sou chamado ao telefone. O que você vai aprontar logo mais?, pergunta o amigo que anda meio distante. Não sei ainda, respondo. Vamos tomar um chope?, ele propõe.
Combinamos hora e local, desligamos. Sem nada de urgente para fazer, confiro no computador se há novidades. Um caso de polícia: o maquinista Antero da Silva matou a golpes de facão a mulher  Daniele e o vizinho Edzé de Oliveira; ao chegar em casa, Antero os pegou bebendo caipirinha e ouvindo Roberto Carlos. A notícia não diz qual a música do crime.
Antero, Daniele, Edzé, Roberto Carlos – o que eu tenho a ver com essa turma? Chego ao chefe, informo que não estou bem, vou embora. Sem problema, ele diz, e, piscando o olho: depois me conta se é loura ou morena.
Os chefes são imbecis, penso sem nenhuma convicção, ao chamar o elevador. Pego um táxi, para o motorista imbecis são os guardas de trânsito. Fechado por uma mulher, esquinas atrás e flagrado pelo guarda ao ir à forra, ele está possesso. E ainda sobra para as mulheres. Acredite, diz, toda mulher que dirige não presta. Faz uma pausa, me olha pelo retrovisor, amacia o discurso: falo em tese, o senhor entende?
Não respondo, nem balanço a cabeça. Desço em frente ao bar em que vou encontrar o meu amigo, logo o avisto. Nos abraçamos em meio a boas risadas, sempre que nos revemos rimos de mil peripécias, encravadas na memória, há quanto séculos, canalha, canalha, há quantos séculos?
No terceiro chope, a conversa solta, a pressão no peito sumiu, o mundo parece razoável. E, trazida pelo burburinho das mesas próximas, uma saudade vaga me dá vontade de em fevereiro brincar o carnaval.

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O guarda da esquina
O fim de Kadafi (aliás, nada justifica sua execução, ele tinha de ser julgado) é uma ótima oportunidade para lembrarmos que não há ditadura boa, todas são horríveis. Todas, todas, não nos iludamos. E nem sempre o pior das tiranias é o tirano, ele até pode ser bem intencionado, o pior é o guarda da esquina. Ele e a necessidade de demonstrar autoridade.

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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)


Trégua
Enterrado o amigo querido, me despeço
da abatida viúva. Daqui três/quatro dias,
volto a freqüentar sua cama.
(abril/87)

Xeque-mate
“Socorro, socorro,
Socorro, se não eu morro.”
- Até quando esses gritos,
esse escândalo na Rua de Baixo?
- Deixa pra lá, vamos, é tua vez de jogar.
“Socorro, socorro,
socorro, se não eu morro.”
- Educação é o que falta ao povo.
- Não se preocupe, essa gente se entende
E sobrevive nos vapores do álcool.
“......................
.............................”
- É tarde, me distraí, joguei errado.
- O espírito mau se foi, ou ninguém socorreu
e quem gritava morreu.
- Não tenho saída, meu pobre rei está cercado.
(fevereiro/94)


                                                               Sapiência
                                               Sempre tem alguém
                                               que sabe mais que eu.

                                              Menos? Vou pôr
                                              anúncio no jornal.
                                                             (abril/2000)

sábado, 15 de outubro de 2011

Nelson

Ô, elegância, ô, elegância, pão com banana...

Em 2012, está no jornal, Nelson Rodrigues completaria 100 anos. Ao ler a nota me lembrei que li os dois volumes de Engraçadinha, seus amores, seus pecados em Curitiba, no auge da adolescência. Foi um incêndio, então Nelson não era apenas o cronista esportivo que transformava o futebol em epopéia, era o romancista (só mais tarde eu o conheceria como teatrólogo, nosso maior teatrólogo) que oferecia doses enlouquecedoras de erotismo (talvez eu ainda nem conhecesse essa palavra), que estourava os limites e ia fundo naquilo que mais me mobilizava.
No verão dos meus 18 anos, vim passar quinze dias de férias no Rio. Numa atitude típica de fã, procurei o ídolo no Jornal dos Sports - o JS era de seu irmão, Mário Filho, jornalista e romancista, cujo nome é o nome oficial do Maracanã. Ele me atendeu com toda delicadeza, conversamos. Tinha a voz grave, de uma densidade bêbada (e ele, alguém me disse, não bebia). Na inocência da idade, lhe perguntei se achava que sua obra ficaria. Me olhou incrédulo, meu anjo, quem sou eu? Meu anjo... o braço direito esticado, a mão no meu ombro, num gesto afetuoso.
Um ano depois, no verão dos 19, vim para o Rio de vez, fazer jornalismo. Nos primeiros tempos eu ouvia Nelson Rodrigues no rádio e o via na televisão, em programas esportivos e em entrevistas, sempre cheias de humor, sobre a vida e as paixões, o desejo e o pecado (foi numa dessas entrevistas que ele negou ter dito que toda mulher gosta de apanhar e corrigiu, só as normais).
Mais tarde, fui trabalhar no Globo, onde ele publicava suas colunas sobre futebol (À sombra das chuteiras imortais e Meu personagem da semana). Em certa época, às duas colunas ele acrescentou suas Confissões, cujos originais, foram, não sei quantas vezes, revistos (copidescados, no jargão profissional) por mim. Como copidescar Nelson Rodrigues, como mexer no texto de um mestre? De mais a mais, ele não datilografava em espaço três, como era a norma, e sim em espaço um, o que quase impossibilitava qualquer emenda. Me limitava pois a atualizar a acentuação (que ele não dominava)  e a suprimir um ou outro erro de datilografia.
Em outra fase eu, que era redator do Segundo Caderno, em determinados dias completava o quadro da Editoria de Esportes. E lá estava Nelson que, embora, por ser uma personalidade, pudesse trabalhar em casa, gostava de escrever suas colunas na redação. Fumava bastante (naquele tempo, o fumo era liberado em qualquer lugar) e, de quando em quando (era de poucas palavras), soltava comentários sobre isso ou aquilo, esse ou aquele.
Nunca perguntei a Nelson se se lembrava de mim visitando-o no Jornal dos Sports, e ele também nunca falou a respeito. Acredito que não se lembrasse, devia receber muitos jovens, como eu, seus fãs.
Fora da redação, às vezes nos encontrávamos no boteco vizinho ao jornal. Ele entrava no seu andar curvado e, sabendo-se o centro dos olhares, caprichava no timbre bêbado ao pedir o lanche preferido: Ô, elegância, ô, elegância, pão com banana.

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Heróis
O jornalista que, varado por uma lancinante dor de corno, atravessou na corrida uma porta de vidro. O jornalista que, atacado por súbita dor de barriga ao chegar ao trabalho, borrou-se no elevador, na frente do patrão. O jornalista que, depois de muito perseguir um subordinado, levou dele um banho de urina em plena reunião vespertina. O jornalista que, flagrado bolinando um contínuo na escada escura, enfartou. O jornalista que, apaixonado pela mulher do editor-chefe, apanhou de cinto. O jornalista que, demitido, ajoelhou-se diante do diretor e pediu nova oportunidade. O jornalista que ...
Quase cinco décadas de jornalismo e, na cabeça, tantas histórias grotescas de colegas, famosos e desconhecidos, que história minha citaria, se eu não fosse eu?

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Promessa
E aí está de novo o discutido Horário de Verão. Prometo fazer de tudo para gostar.

sábado, 8 de outubro de 2011

A lenda de Maria e João

Difícil saber se Maria, do departamento de pessoal, mulher de João, o subgerente, separou-se dele e passou a transar com meia empresa ou se passou a transar com meia empresa e separou-se dele. Difícil saber, e a ordem dos acontecimentos não importa. Importante foi o que ela disse às amigas, com apenas um ano de casada percebera que não queria marido, queria, isso sim, ser livre. Tão livre que logo largou o emprego e se mandou para Londres, na época destino de uma multidão de jovens brasileiros, de variado poder aquisitivo, ávidos de aventuras.
João era louco por Maria. Superado o abatimento que quase o liquidara, decidiu jogar todas as fichas: demitir-se e ir para a Inglaterra. Só voltaria ao lado da mulher ou, se ela definitivamente não o aceitasse, dentro de um caixão. O chefe, seu confidente (e um dos raros que não o traíra) tentou demovê-lo, esquece essa vagabunda, cara, ela não te merece, daqui um tempo você vai estar em outra, feliz...
O subgerente agradeceu as palavras do chefe, abraçou-o comovido e pediu as contas, eu tenho de ir, cara, tenho de ir, torça por mim. O amigo retribuiu o abraço e prometeu, João, quando voltasse, seria, se quisesse, readmitido.
João embarcou num sábado.
E num sábado, sete meses depois, voltou.
Voltou com Maria. Grávida, a paixão por João reacesa.
Instalaram-se na casa de uma tia e, já na segunda-feira, João reapareceu na empresa. Bateu na porta do chefe, mas nem precisou cobrar a promessa de readmissão. O empregado que, com sua viagem, assumira a subgerência, abrira dias antes uma empresa concorrente, a vaga é tua, o chefe vibrou, é tua mesmo que você não queira, te imploro... Engancharam-se num cumprimento ruidoso e, ainda ali, João convidou o chefe para padrinho da criança que crescia na barriga de Maria.
A vida se normalizou, a criança, um menino, nasceu. Maria arranjou emprego em outra empresa, com ela longe e a renovação natural de pessoal poucos veteranos se lembravam dela e de suas histórias. E os que se lembravam nada comentavam, João tinha poderes.
Mas seus poderes não valiam em casa, de novo Maria começou a se desregrar. João soube da reincidência por ela própria, uma noite, ao chegar do trabalho, encontrou-a de mala pronta e o filho com roupa de passeio, vamos embora, ela disse, há meses tenho outros homens e não quero mais morar com você. Pediu que o marido não a perseguisse, dali a um tempo daria notícias, não impediria que ele visitasse a criança. Aparvalhado, João não reagiu, deixou mãe e filho partirem. Sozinho na sala em penumbra, sentou-se no chão e ensaiou soltar os músculos para não morrer de tanta tensão. Não se mexeu ou chorou, não comeu ou se urinou, amanheceu sentado no chão, os músculos soltos.
Passados alguns dias, procurou Maria e, sem meias palavras, lhe propôs: se voltasse a morar com ele, a transar com ele, a dividir com ele o dia a dia do filho, ela estaria dispensada de lhe prestar contas do que fazia na rua. Jura?, Maria pôs doçura na voz. João jurou, eu desejo você, o resto é o resto, não interessa. Ela se equilibrou na ponta dos pés e, enxugando uma lágrima de heroína de lenda de amor, beijou o marido com vontade.

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 Elas
O Nobel da Paz sair para uma mulher já seria motivo de alegria para quem apoia a luta feminina por direitos iguais em todos os níveis. Sair então para três mulheres é alegria ao cubo. E sair para duas negras e uma árabe é alegria tamanho família, é uma senhora emoção.

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Wall Street
De início, o crescimento nos Estados Unidos dos protestos populares contra a exploração econômica é de deixar a gente de queixo caído. Depois, brilha o óbvio: claro, é de lá que um dia virá  o golpe que ferirá de morte o capitalismo.

sábado, 1 de outubro de 2011

Álcool

O invasor
      Todo fim de noite, MC ia do jornal em que trabalhava para um bar no Leme, a dois quarteirões de onde morava. Sentava-se numa mesa de canto e começava a beber. Bebia de mais e comia de menos, o bastante para enganar o estômago. Lá pelas tantas, de porre, levantava-se e cantava “Noche de ronda” (Luna que se quiebra sobre La tiniebla de mi soledad...). Finda a canção, curvava-se em agradecimento aos aplausos chochos e, trôpego, ia embora.
Uma madrugada, ao abrir a porta da sala do apartamento, quase caiu fulminado. Pensou em gritar pela mulher, mas se lembrou que ela tinha ido dormir na casa da mãe, a velha, doente, pedira companhia. Reuniu todas as forças, que àquela altura eram mínimas, e voltou à portaria.
- João - falou engasgado, - tem um cavalo na minha sala.
O porteiro segurou o riso, bancou o conselheiro:
- Um cavalo? Ora, o senhor precisa maneirar, desculpe, mas ultimamente tem exagerado...
- João, não estou bêbado, o porre passou. Um cavalo está junto do sofá, ele invadiu minha sala.
-  ...
- Um cavalo branco, o invasor é branco.
- Por favor...
- Por favor o escambau – MC perdeu a paciência. – Sobe comigo, você não pode me negar ajuda.
Tomado por súbita energia, prendeu o porteiro pelo pulso e o puxou até a porta do apartamento, no segundo andar.
- Olha lá, o que é aquilo?
João estupefato:
- Um ca..., um cav...
- De que cor, diga, de que cor.
- Bran... um ca...valo branco.
Fácil concluir o que acontecera: o animal, na certa procurando tufos de capim para matar a fome, tinha escorregado na encosta do morro que ficava nos fundos do prédio e, o janelão do apartamento de MC aberto, despencara para dentro da sala.
Por sorte, muita sorte, o prejuízo foi pequeno - meia dúzia de objetos de pouco valor quebrados – grande foi o trabalho dos bombeiros para pôr o quadrúpede para fora. E, daquele dia em diante, MC passou a ser mais conhecido na boemia como o jornalista do cavalo branco na sala do que como o pinguço que assassinava “Noche de ronda”.
  

Profissionais
Ainda era novo em jornal, uma noite, em torno das dez horas, encontrei no Centro da cidade FN, repórter já tarimbado, que eu conhecia de oi, tudo bem? As pautas do dia cumpridas, os dois à toa, ele me convidou para tomar um uísque. Aceitei de pronto, sair com FN, ótimo papo e colecionador de histórias saborosas, me acrescentaria experiência, bastava ser bom ouvinte.
Enveredamos para a Lapa e, assim, ele a emendar um caso no outro e eu a ouvi-lo com admiração, falando apenas o indispensável, pulamos de bar em bar, em cada bar uma ou duas doses. De repente percebi que amanhecia, a noite passara e nós passamos a noite bebendo e caminhando, varamos toda a Avenida Mem de Sá, estávamos na boca da Rua de Santana. Nos despedimos e eu peguei um táxi para casa. É bem possível que naquele dia eu não tenha ido trabalhar, estava em ruínas.

Anos depois, achando que ia fazer uma grande revelação, falei da minha aventura com FN a NS, também jornalista. Ele riu superior: “Você fez isso uma vez? Pois eu perdi a conta de quantas noites eu e o FN atravessamos a Lapa enchendo a cara.” Acendeu o cigarro, me deu um tapinha camarada na barriga: “Programa pra profissional, meu querido.”  

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Ilíada
Por tudo que os gregos da antiguidade nos ensinaram - e continuam a nos ensinar -,  os gregos de hoje, mergulhados no desastre financeiro, merecem mais que nossa solidariedade, merecem nosso carinho.
   (De repente, um pensamento romântico: se eu fosse um desses empresários multinacionais,  com grana até a estratosfera, tirava a Grécia do buraco. Em seguida, o pensamento cínico: ainda bem que não sou).

sábado, 24 de setembro de 2011

Os velhos

Minha amiga Martina aparece e me convida para acompanhá-la na visita a uma tia, numa casa de velhos na Tijuca, mantida pela colônia judaica. Eu nunca estive em lugar assim, com coceiras de repórter aceito o convite.
Você sabe, Martina pergunta no caminho, que 27 de setembro é o Dia Nacional do Idoso? Digo que não e ela comenta o paradoxo, o velho brasileiro tem o seu dia no começo da primavera, estação por excelência ligada à juventude, prova disso as expressões flor da idade e na primavera da vida.
Chegamos à casa, encontramos um ambiente limpo e seguro, bonito e confortável, espelho do respeito dos filhos e netos aos que não têm mais nada a oferecer. Mas não é do respeito e da bondade dos fortes que quero falar, sim de nossa extrema fraqueza, a velhice.
Como a tia de Martina, a maioria dos internos já ultrapassou a linha da lucidez. Sentados ou deitados, em frente à janela ou à televisão, nos quartos ou no jardim, eles olham a ausência, o insondável. Um mastiga sem parar, o que lhe enche a boca vazia?  Outro ri e limpa os óculos, limpa os óculos e ri. Aquela mistura ídiche, português e russo. Esse não se cansa de ajeitar o boné e a gravata puída.
A visita não demora, saio calado, eu e eu. Amarelo, vermelho, paramos na esquina.
- E daí – Martina fala -, que barra, hem?
- Barra pesada – concordo.
- Com sinceridade - Martina, rouca -, não quero chegar a esse ponto. Se não morrer antes, que alguém se encarregue de... E você?
Balanço os ombros, sem palavra. Mas, dentro, jorra a certeza de que, se viver tanto – e tomara que viva -  não aceitarei antecipar a passagem. Me tirem as dores e desejarei ir até o fim do fim, nem um minuto menos. Olhos no vazio, me sujando, me molhando, resmungando, respirando. Afinal, quem garante que não há beleza e prazer nessa conclusão – nesse parto - que tanto choca os capazes?
Assim, aviso logo: estará cometendo assassinato o poderoso que, no futuro, eu inútil, decidir, em nome não sei do que, acabar comigo. Prisão nele, aos ferros! E se isso ocorrer num tempo de ditadura dos moços, em que a ordem de prisão for arquivada, não me renderei. Mesmo não acreditando em outra vida, virei assombrar o prepotente.
Embora não religioso, concordo com a Igreja na oposição à eutanásia (como, no geral, ao aborto). A Igreja, por achar que a vida é o maior bem do ser humano; eu, por achar que a vida é o meu único bem. E, religião fora, estou com Dostoievski – viver, viver, nem que seja num metro quadrado.
(Se em algum momento, eu impaciente, pedir que me abreviem a experiência, não me atendam. Será desvario de velho esclerosado. Valerá o que escrevi a cima).

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Para concluir esse papo estranho de primavera e velhice, um hiphip hurra aos velhos que continuam no batente, símbolo maior deles o grande Oscar Niemeyer aos 104 anos.

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Desobediência
Segundo dia de primavera, frio, garoa e vento. A natureza é, por natureza, desobediente.

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PROSEMAS
(Os Prosemas podem até parecer poesia, mas não são.
São apenas exercícios de escrita. Nada mais que exercícios de escrita)


A Sófocles
Meu pai morreu há dez anos, e ainda não consegui
                                                                   chorá-lo.
Minha mãe coninua viva, no entanto já lacrimejei
Muitas vezes ao imaginá-la morta.
Ruínas do teatro grego.
(março/87)

Geometria
O mundo é triangular.
Céu, terra, mar.

A vida é em espiral.
O bem vence e vira mal.

Quadrada é a morte:
NADA 
A      D
D      A
ADAN

  NA
  DA

N_A
D_A
(agosto/90)

Nem
O fim do mundo
será para todos.
Nem Shakespeare escapará.
(agosto/09)

sábado, 17 de setembro de 2011

Elis

Eu trabalhava na sucursal carioca da Folha de S. Paulo, o chefe de reportagem me escalou para entrevistar Elis Regina e Ronaldo Bôscoli, que estavam de casamento marcado (o Google diz que foi em 1967, então foi). Ela vinha ao Rio acertar os detalhes da cerimônia, o chefe me passou o telefone do noivo e a clássica recomendação: vire-se. Liguei, Ronaldo, desmentindo a fama de grosso, me atendeu bem. Marcou a entrevista para as 11 horas de sábado, e me deu seu endereço, em Ipanema.
O fotógrafo e eu chegamos pouco antes das 11, o próprio Ronaldo nos abriu a porta. Disse que Elis não demoraria a vir e sentou-se diante de uma máquina de escrever portátil - a mesa das refeições, redonda, era também a mesa de trabalho. A seus pés (memória ou fantasia?) se esparramava um cachorro de bom tamanho.
Tentei um papo descontraído - como é isso de de repente um solteirão (Ronaldo era 16 anos mais velho que Elis), que namorou as principais cantoras do Brasil, se casar até no religioso? – ele balbuciou qualquer coisa e começou a datilografar. O silêncio só não pesou porque surgiu uma senhora – minha sogra, Ronaldo apresentou – que nos deu atenção. Assim, enquanto o fotógrafo clicava, eu entrevistava a mãe de Elis. “Minha filha”, ela disse, “já é a maior cantora do Brasil.”  
Nesse exato momento, a estrela apareceu. Beijou o noivo, cumprimentou os visitantes, repreendeu a mãe: “Não, senhora, a maior cantora do Brasil é a Elisete Cardoso”. E, para nós: “Por favor, não liguem, mãe é mãe.” Deixou-se fotografar ao lado do quase marido e da mãezona, disse que a fama de mulherengo de Ronaldo não a incomodava, pois sabia que ele hoje era outro, e sugeriu que eu e o fotógrafo a acompanhássemos até a Capela Mayrink, na Floresta da Tijuca, onde seria o casamento. Precisava medir a nave para encomendar a decoração, nós a ajudaríamos e, ao mesmo tempo, arremataríamos a entrevista.
Subimos para a floresta no fusca de Elis (ou seria de Ronaldo?). Medimos a nave da capela, voltamos pela Avenida Niemeyer, paramos na casa em que o casal moraria (“esta casa é do Juca Chaves”, ela contou, “nós alugamos”) e descemos de volta para Ipanema. Conversando sempre. Então, já na praça em que Ronaldo morava, um ônibus elétrico (chifrudo, no jargão popular) fechou o fusca. Foi o que faltava para aquele sábado se tornar inesquecível. Num pulo, Elis pôs meio corpo para fora do carro e gritou para o motorista abusado: “Só porque sou mulher? Vá tomar atrás do saco.”
Reacomodou-se ao volante, se dobrando de rir: “Sou ou não sou uma moça fina?”

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O bom egoísmo
Cedo descobrimos que o egoísmo é um sentimento fortíssimo, invencível por mais que o enfrentemos. O que nem todos percebemos é que há o bom egoísmo, como há o bom colesterol. O bom egoísmo aflora nos atos de amor e doação, como por exemplo os praticados pelos voluntários que socorrem os atingidos por uma catástrofe. Basta ouvi-los: eles falam com emoção do prazer e da alegria de ajudar o outro, da sensação de plenitude ao fazer algo para alguém sem esperar alguma vantagem. Ou seja: prevalece o “eu”, o gozo de ter-se dado. E, ao contrário do que possa parecer, é ótimo que seja assim, pois esse tipo de egoísmo nos torna melhores. (Dentro desse raciocínio, já imaginaram o tamanho do egoísmo de uma Teresa de Calcutá? Um gigante, salve ele). 

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A Merkel de Berlusconi
Que o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, é meio (ou inteiro?) bandido, a gente sabe há muito tempo. Mas, reconheça-se, é um bandido engraçado. Num telefonema interceptado pela Justiça, ele chama a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, de bunduda incomível. Não dá para deixar de rir. Longe das feministas radicais, naturalmente.

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Primavera
Daqui a seis dias, termina o inverno. Muitos preferem o Rio no outono, eu na primavera. Que chegue esbanjando beleza, aleluia.   

sábado, 10 de setembro de 2011

Em família

 A crônica abaixo foi publicada em meados de setembro de 1997, duas semanas depois da morte da princesa Diana. Ao reencontrá-la, dias atrás, resolvi oferecê-la, sem qualquer alteração, aos amigos do BP. Ao passado, portanto:


A vinda do papa ao Rio, o real e a dentadura, a regulamentação do aborto em caso de estupro ou de risco de vida da mãe, a escolha de Atenas como sede das Olimpíadas de 2004, a nova lei eleitoral, as últimas novidades da informática. Os assuntos se misturavam, o almoço familiar corria animado. Às tantas, alguém mencionou os funerais de Diana, visto ene vezes por todos.
Como acontece quando se comenta um filme de sucesso, cada um lembrou a cena que mais o tocara – a reverência da rainha diante do caixão da ex-nora, o discurso certeiro de Charles Spencer, o canto contido de Elton John, os aplausos do povo à passagem do féretro, a cabeça sempre baixa do príncipe William, futuro rei.
A rememoração do espetáculo fúnebre foi interrompida pela única criança da casa, uma garota de cinco anos. Afinal, ela perguntou compenetradíssima, a princesa estava mesmo grávida?
Os adultos se olharam esbugalhados. Onde você ouviu isso?, a mãe cobrou. No colégio, a pequena respondeu. E insistiu: Diana carregava ou não o irmão do rei na barriga? Maneiroso, o pai lembrou que Os 101 Dálmatas, o filme com Glenn Close, estava pronto para rodar na sala de TV, você não quer assistir de novo? Ela queria. Vocês só falam bobagem,  a filha acusou, eu prefiro ver a Cruela, adeus.
Livres da enxerida, mas a partir do que ela tinha perguntado, os adultos repisaram a história, pingada nos jornais, de William ganhar um irmão mestiço e muçulmano. Um primo, o intelectual da família, fingiu apreensão: anteontem a irriquieta Margareth, ontem os Beatles, hoje uma lady mundana, humanitária e marqueteira, amanhã um herdeiro moreno, de cabelo crespo; em que beco o grande império vai parar?
Houve risos, mas fracos, era hora da sobremesa e as atenções se concentraram no pudim de clara que a empregada acabara de pôr no centro da mesa. Foi aí que a garota, saltando de surpresa da sala de TV, disparou outras duas perguntas: e se Diana tivesse na barriga não um menino, mas uma menina? E se a menina e o rei se apaixonassem, como os irmãos da novela do canal mexicano?
Fez uma careta e desapareceu, voltou aos dálmatas. Um incesto real?, escandalizou-se a prima solteira, que se orgulhava de ter recusado um egípcio de Alexandria, talvez parente dos Al Fayed. A mãe da mãe da garota, formada em Letras, mas do lar, indagou: há incesto em Shakespeare? Niguém se lembrava. Esperto, o intelectual da família fechou a questão: em Shakespeare há de tudo, o mundo, o céu, o inferno e mais um pouco. O avô balançou a cabeça e repetiu a sobremesa. Dos deuses esse doce, disse se lambendo.
Da sala de TV, vinham latidos inteligentes.

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Segundo pesquisas, em julho 68% dos britânicos já admitiam o casamento do príncipe Charles com Camilla Parker-Bowles, e que, portanto, mesmo sendo a mocinha da história, Diana terminaria derrotada pela rival. De repente, vem a morte e põe tudo de pernas para o ar. Agora, qual o futuro de Camilla?
No meio de todo esse drama, fica apenas uma certeza: Charles virou definitivamente sapo. Case-se ou não com a amante, sente-se ou não no trono, não tem a mínima chance de cura.

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11/9/2001
  Eu trabalhava em casa, o telefone tocou, ligue a TV, disse minha então mulher, o mundo está acabando em Nova York.  

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Sinceridade
     Há dias, dois fabricantes de agrotóxicos admitiram publicamente que seus produtos matam. Não é de apalermar? Nessa batida, a sinceridade acabará como regra nº 1 nos grandes negócios. Reajamos enquanto é tempo, temos uma tradição de esperteza a preservar.

sábado, 3 de setembro de 2011

Brasiliana

Em que momento o Peru se ferrou?, indaga Mario Vargas Llosa em Conversa na Catedral. Às vésperas de mais um 7 de Setembro, repudio o ufanismo oco, o cacoete de quem está no poder, e pego emprestada a pergunta do romancista peruano. Quando o Brasil tomou o caminho da perda? Já durante a primeira missa ou ao ser dividido em capitanias hereditárias? Às margens do Ipiranga ou com o golpe militar de 15 de novembro de 1889?
Quando, quando? Em que encruzilhada caímos na vereda cheia de pedras e desníveis? Em que situação a consciência do provincianismo incomodou tanto que passamos a repetir baboseiras como somos os maiores, conosco ninguém pode, nada como ser brasileiro?
O jeitinho, esse vírus invencível, ante que obstáculo o adotamos? Que ato de desumanidade provocou horror tão grande, que passamos a nos proclamar um povo cordial? Frente a que humilhação inventamos que somos livres de preconceitos?
Que manifestação de insegurança nos levou a nacionalizar Deus? Que presente nos frustrou a ponto de nos considerarmos o país do futuro? Um futuro jamais alcançado, ilusório como a linha do horizonte.
Pois diante desse nunca-chegar, cansado e descrente da ideia de que amanhã será melhor, faço um pequeno pedido aos nossos poderosos: não exagerem na mentira; mintam o estritamente necessário, só mesmo em casos extremos. Quem sabe assim, enfim nos aproximemos dos países mais bem-sucedidos, aqueles que, por inveja, desdenhamos.

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(Se, depois de ler o meu desabafo, você estiver papagaiando velhos lamentos do tipo ah, se tivéssemos sido colonizados pelos ingleses, ou nosso problema é esse povinho, cale a boca. Simplesmente, você não entendeu nada.)

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De qualquer modo, é inegável que os governantes de hoje, eleitos pelo voto popular, mentem menos (pouco menos) que os estrelados do regime militar, ainda tão próximo. Naquele tempo, enquanto nos porões os gritos dos torturados se multiplicavam, aqui em cima os palacianos diziam sem  gaguejar que o Brasil era uma ilha de calma e prosperidade. Ame-o ou deixe-o, os mais velhos se lembram. E, por favor, não esqueçam. Não esqueçam e, sempre que couber, ponham os jovens a par do terror de ontem.
Terror muitas vezes embrulhado no cinismo. “Nosso sonho mesmo”, me disse em plena tirania um brigadeiro linha-dura, “é voltar para os quarteis. Infelizmente, o povo ainda não nos liberou.” Coitado, morreu antes de o último general presidente deixar o Palácio do Planalto pela porta dos fundos.

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Hoje devemos pensar com menos pressa nos sem-Brasil, milhões de pessoas que vivem (vivem?) em circunstâncias muito piores que os sem-terra, os sem-teto etc. Os sem-Brasil, ou sem-tudo, não desfrutam da mais mínima cidadania. Não têm condição de comer nem um prato de farinha.

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Também é uma boa hora para lembrarmos Darcy Ribeiro: “Dói (cito de memória) perceber que um país privilegiado como o Brasil não deu certo. Como isso aconteceu, como?”

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Citando outro brasileiro de respeito, Vinícius de Moraes: Vontade de beijar os olhos de minha pátria/De mimá-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos.../Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias/De minha pátria, de minha pátria sem sapatos/E, sem meias, pátria minha/Tão pobrinha.

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Tadinhos
E os doutores do Judiciário estão contrariados porque o orçamento federal de 2012 não prevê reajuste salarial para eles. Tadinhos, sempre tão esquecidos, o governo só dá atenção aos aposentados do INSS.

       No mais, vale recorrer à Bíblia: “O rico comete injustiça e ainda reclama; o pobre é injustiçado e ainda pede desculpas.” (Eclo, 13,3)