sábado, 16 de abril de 2011

Mulheres zangadas

       Desci do táxi na esquina, caminhei para o prédio em que morava. Em frente, um ajuntamento me deteve. Havia dois carros da polícia e, forçando passagem entre os curiosos, cinco PMs conduziam três mulheres e um homem.
Das janelas em volta desciam aplausos, vaias e assobios, de súbito abafados por um instrumento de sopro, de som grave, a reproduzir cômica sequência de compassos. A multidão vibrou, um dos fardados empunhou o revólver, tentou descobrir onde se escondia o gozador. O instrumento silenciou, os detidos foram enfiados nos carros, menos uma das mulheres. Ela esperneava e gritava.
Os aplausos aumentaram, a rebelde recebeu um safanão, cedeu. Os policiais saíram de sirena ligada, catei o porteiro para saber o que acontecera. Não o avistei, mas a mulher sem testa do terceiro andar me percebeu curioso, me cercou.
- Aqueles quatro- contou – promoveram uma gandaia. Bebida, tóxico, libidinagem. Alguém chamou a polícia.
- E a polícia veio logo? – perguntei por perguntar.
- Veio. Aliás, o senhor não é jornalista? O seu jornal tinha que denunciar essa sem-vergonhice. Nossa rua, principalmente nosso quarteirão, se tornou a lata de lixo de Copacabana, que já é uma enorme lata de lixo.
- Vou falar com o chefe de reportagem – prometi.
A mulher se animou, desfiou queixas. Ouvi um bom tempo, pedi licença, subi. No dia seguinte, falei com o chefe de reportagem. Ele, no entanto, não se interessou. A sem testa, sempre que me encontrava – e me encontrava com frequência – cobrava.
- Você prometeu... – dizia cheia de reticências.  
Acabei lhe explicando que eu não mandava no chefe de reportagem, a última palavra era dele.
- A senhora me desculpe, fiz o que pude.
Ela não desculpou, passou a me virar a cara.


Isso aconteceu há anos. Meses depois, me mudei de Copacabana, nunca mais passei por aquela rua. Nunca mais, até a última quarta-feira. Nesse dia, de repente me vi diante do edifício em que tinha morado por três anos. E, junto da porta, a olhar o movimento, estava a mulher sem testa. Engordara um pouco e a espessa franja, que ia do alto da cabeça às sobrancelhas, dando-lhe um aspecto entre anedótico e sinistro, embranquecera.
Me aproximei simpático, como vai a senhora, se lembra de mim? Ela espremeu os olhos, me procurando na memória, em dois segundos me localizou. Levantou o dedo, ergueu-se na ponta dos pés.
- E não lembraria? Você prometeu uma entrevista e não cumpriu a palavra. Tratante. O que te traz aqui? Boa coisa não deve ser.
Me deu uma banana e entrou.

***

Eu estava sozinho no Lamas, uma mulher alta e magra, com restos de beleza, aproximou-se, puxou a cadeira à minha frente, sentou-se.
- Sim? – foi o que consegui falar.
- Vai dizer que você não está me reconhecendo?
- Desculpe, mas...
- Beatriz, cara. Esqueceu?
- Bem...
- Será que até você vai me achar chata?, que diabo.
- Por favor, eu...
- Não sou chata, compreenda, sou sozinha, eu e o Olavinho, que passou fome quando o Olavo sumiu, minha família não me socorreu, me castigou porque eu tinha ido viver com um homem casado que me trataria mal, é o que dizia meu pai, e o velho estava coberto de razão, o Olavo me quebrou, me convenceu a largar o emprego, boba eu, e não me dava afeto, me agredia e me rebaixava, e amaldiçoava minha barriga, o nosso fil...
Parou de estalo, arregalou os olhos.
- Caramba, você não é o Manoel.
- Não, não sou o Manoel.
- A cara dele, essa cara de doido.
Levantou-se, procurou outra mesa. Pediu um chope e me mostrou a língua. Quem manda eu ter cara de Manoel, e de Manoel doido?

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Eu nunca tive qualquer empatia com Persio Arida, presidente do Banco Central no Governo FHC, nem havia razão para isso. Na verdade, na única vez que o vi de perto, faz tempo, no calçadão de Ipanema ou do Leblon, achei-o uma figura fosca. Não posso, porém, deixar de recomendar o texto em que ele lembra sua participação na luta contra a ditadura militar, publicado pela revista piauí de abril, nº 55, (“Rakudianai”, o título). Corajoso, comovente, espontâneo. Leitura obrigatória para quem procura entender um pouco mais cada dia este país desconcertante.    
  

                                                          

11 comentários:

  1. Gosto muito do seu jeito descontraído de escrever... vou procurar a Piauí.

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  2. Magay, um amigo me falou do teu blog, eu resolvi dar uma olhada. Achei interessante, vale a pena acompanhar. Vc vai sempre falar de mulher?
    Abraço do gaúcho Igor Matoni.

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  3. Igor, seja bem-vindo. As mulheres terão, sim, bom espaço, mas, você já deve ter reparado, o blog não é só delas. Como está escrito no cabeçalho, aqui cabe qualquer assunto.
    Você é gaúcho e usa "você" (vc) em vez de "tu". Por quê?

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  4. É raro, mas gaúcho tb usa você e além disso há mais de 30 anos moro na pauliceia. Aliás, ser gaúcho é um detalhe desimportante, esquece, tchê.
    Abraço, Igor Matoni.

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  5. Quanto preconceito do teu amigo ex-gaucho, atual paulista. Alguma coisa contra nós, mulheres, tchê ??

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  6. E agora, Igor? Minha amiga Teresa está te chamando de preconceituoso. Que dizes?

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  7. Magay, que que é isso? Tua amiga levou a sério uma simples brincadeira. Dona Teresa, foi só uma brincadeira. A senhora por acaso é uma das mulheres zangadas da crônica do Magay? Um beijo do Igor Matoni pra senhora.

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  8. Dona Teresa é ótimo ... antes de mais nada quero te dizer que não sou nenhuma dessas que o Magay citou. Não sou a mulher da banana nem a Beatriz. O meu comentário foi expontâneo. Percebi nas entrelinhas um certo ar de desdém da sua parte se o blog fosse direcionado só pra mulheres. Nós que lutamos tanto pra termos os mesmos direitos queremos mais é nos misturar a vcs, gaúchos, paulistas, cariocas, mineiros ... e olha, temos histórias ótimas pra contar. Vc vai gostar !

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  9. Certo, Teresa. Proponho a paz.
    Beijaço do Igor Matoni.

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  10. Oi Marco, já havia navegado pelo seu blog por indicação da Antonia, mas encabulada não deixei nenhum recado. Gostei do q li! Hj retornei pq postei no mural da Antonia o texto do Persio Arida q apesar de ter sido ministro do FHC (apesar para mim, não sei se para vc rs) escreveu um texto primoroso, que me marcou profundamente. E ela, Antonia, me respondeu dizendo que vc já havia comentado c/ ela a respeito e me me deu o link para ver o q vc falou no seu blog. E aqui estou. Como vc bem disse, texto comovente. Gd abç e sucesso no blog!
    Eneida (amiga da Cristina e sua tb rs)
    PS - Estou encantada com a Antonia! Q moça inteligente, articulada, antenada, politizada. Pessoinha mt especial! Parabéns!

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