domingo, 10 de abril de 2011

Questão de inteligência


A cena ocorreu na Rua Buenos Aires, Centro, e eu assisti. Meio-dia, um grupo de curiosos cercava duas mulheres esfarrapadas, uma gorda, a outra esquelética. Elas discutiam aos berros, por pouco não se atracavam. A gorda falou mais alto:
- O menino é meu e tá acabado.
- Descarada – a magra retrucou. – Tu sabe que ele é meu filho.
Um barrigudo, de crespas costeletas, se intrometeu:
- Como que é teu se você é mulata escura e ele, branco?
- O pai dele – a mendiga explicou – era branco azedo, sangue de gringo.
O objeto da disputa, um menino de mais ou menos três anos, o nariz escorrendo, estava sentado no asfalto, entre as brigonas, inteiramente alheio à confusão em volta.
- O garoto – o barrigudo insistiu – deve saber de quem é filho. Ele que se manifeste.
- O pobrezinho – a mulata informou – não fala nem ouve. É surdo-mudo. Meu filho, podem crer.
- Mentirosa safada – a gorda acusou e cuspiu no chão.
A discussão não terminaria logo. Eu, com hora marcada, ia embora quando um homem de terno e gravata, rosto enrugado, curvou-se e ergueu o menino.
- Eu – disse – sei como resolver o problema. Sou juiz, vou levar o pequeno comigo. Tenho autoridade pra tanto.
A mulata abriu o choro.
- Não, pelo amor de Deus, não faz isso.
A gorda afinou:
- Se ele é autoridade, irmãzinha, a gente se ferramos.
- Não – a outra, desesperada -, não mereço.
O homem a olhou firme. E, num gesto leve e surpreendente, lhe entregou o garoto.
- Vai embora, leva teu filho.
A mãe disparou, o menino colado ao peito. A impostora pegou a direção oposta, também sumiu.
O barrigudo de costeletas bateu palmas.
- Gostei de ver, toma que o filho é teu. Gostei, me amarro em pessoas inteligentes, intelectas.
- Ora – o elogiado sorriu -, só copiei Salomão, Ele, sim, um homem inteligente... Bem, com licença.
Afastou-se. A roda de curiosos se desfez, ainda ouvi o barrigudo perguntar a não sei quem:
- E o dito Salomão, que apito apita esse tio?

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Outra de ignorância, historinha rápida, há anos contada e recontada no meio jornalístico:
O editor chegou para o chefe de reportagem, profissional dedicado mas de sólidos desconhecimentos. “Fulano, manda alguém  ao aeroporto amanhã cedo, vem aí o jesuíta Arrupe, o Papa Negro.” Fulano, querendo mostrar serviço: “Deixa comigo, chefe, manjo esse crioulo.”

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Sábado de manhã, o salão de barbeiro cheio. Ruído de tesouras e navalhas, rumor de dedos folheando revistas de mulher pelada, papos de dois centímetros de profundidade, risadas maliciosas. E, dominando tudo, o rádio com música de última qualidade.
De repente, porém, muda a música. Agora, Gal Costa canta Dorival Caymmi. Em segundos, o salão silencia. O silêncio da emoção, do respeito.
Grande Gal.
Grande grande grande Caymmi.

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A menina, quatro aninhos, tantas aprontou que o pai lhe deu umas palmadas no bumbum. Ela choramingou, ele, sentindo-se culpado, tentou conversar: - Filha, por que você fez tudo isso?
A espertinha, toda caras e bocas: - Ah, pai, porque sou criança.

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Falando em criança, nada a escrever sobre a chacina na escola de Realengo. Pelo menos, por enquanto. O horror me trava.




19 comentários:

  1. Li no Globo a nota sobre o Brava Palavra e fiquei curiosa. Entrei e gostei. O texto sobre a cirurgia na próstata ficou ótimo e este sobre a briga das mendigas por causa de uma criança está delicioso. Pretendo acompanhar o blog.
    Bj.

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  2. Se entendi direito, você é a segunda Ana que deixa comentário no blog. Valeu.
    Em tempo: você é Ana o quê?

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  3. Meu nome é Ana Gam. E mais não digo, vc não precisa saber.

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  4. Concordo, o importante é você acompanhar o blog.

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  5. Tio Marco, é o Guilherme, filho da Léa, amigo da Antonia. Vi hoje a minúscula nota que saiu no O Globo sobre o seu blog. Meus parabéns. Adorei os textos. Vou poder acompanhá-lo agora. Abração

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  6. Que prazer, Guilherme, em ter você como meu leitor. Abraço pra Léa e pro Beto.
    E pra você também, claro.

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  7. Grande Magay! Agora também na internet, sempre provando que "a vida é a vida". Simples assim. Fantástico assim. Saudades de você entrando pela porta do MP dizendo isso, saudades mesmo! Recebi seu e-mail há dias, mas eu queria ver seu blog com calma antes de te responder algo. Muito bom saber que vou poder acompanhar seu belíssimo trabalho. Sou orgulhosamente a sua primeira "seguidora" e, pelo visto, sou a 3ª Ana a visitá-lo por aqui. Tô com um site novo. Eu tinha três blogs e agora tô centralizando tudo num só. Vou deixar aqui o link pra você me fazer umas visitas de vez em quando:
    http://quemtemmedodademocracia.com/
    Bjs.

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  8. Pois é, Ana Helena, a vida...
    Acho ótimo você aterrissar com calma para julgar melhor. E criticar quando achar que é hora de crítica.
    Eu também vou acompanhar seu saite.
    Beijabraço.

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  9. Gostei das historinhas rápidas.
    bj T.

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  10. Ótimas histórias... "grande grande grande papai".

    beijoca da filha Antonia

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  11. Antonia, ter você como leitora me enche de alegria.
    Beijo do Ancião.

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  12. Teresa, nada contra o rosa. Às vezes pode pegar bem.

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  13. Tio Marco, adorei seus textos. Acho os temas cotidianos particularmente interessantes, especialmente quando escritos de forma tão gostosa e descontraída. Certamente continuarei acompanhando as atualizações do blog. Parabéns!

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  14. Valeu, Ju. Fico muito feliz em ter você e outros amigos da Antonia aqui comigo. Continue presente.
    Beijo.

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  15. Marco Antonio......fala sério !!! esta história eu manjo !!!!! kkkkkk
    Vc é mesmo o cara !!! escreve muito gostoso, livre,leve e solto......Parabéns pelas crônicas.

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